domingo, 18 de março de 2012

John Carter (crítica)


Ora, se bem me lembro tinha prometido não voltar a falar de cinema, mas como qualquer político que se preze tratarei de violar essa promessa à primeira oportunidade. A culpa é da tontinha do Blackberry…
Falemos então de “John Carter”, o novo filme da Disney que tem tudo para seduzir os choninhas que gostam de Star Wars (coisa que nada tem a ver comigo). John Carter é um dos primeiros heróis da ficção-científica, criado por Edgar Rice Burroughs, o mesmo que criou Tarzan, em 1912. Não é tão famoso entre as não-elites de sci-fi porque nunca foi adaptado ao cinema, mas a Disney tratou de corrigir essa lacuna precisamente este ano: cem anos depois de a história ter sido escrita. Confesso que é difícil dissertar sobre a história, pois a genialidade da mesma é avassaladora, se tivermos em conta que foi escrita numa altura em que Portugal estava a acabar de sair da monarquia, e que tem conceitos tão avançados em termos de criatividade no seio da ficção-científica que eu julgo que era mesmo necessário recuar no tempo para conseguir medir/avaliar o impacte que uma história destas teve verdadeiramente.
Não sei quão fiel é a adaptação da história original ao filme. Resumindo, algures na Virginia, ainda no tempo dos índios e dos cowboys, o Capitão John Carter é acidentalmente teleportado para Marte, onde trava conhecimento com uma tribo de marcianos verdes, com quatro braços, presas maiores do que as de um javali e que vivem afastados da guerra que é travada entre os habitantes de Zodanga e os de Helium, duas cidades/nações poderosas. Pelo caminho, Carter apaixona-se pela princesa de uma das cidades, que lhe pede ajuda na guerra, e acabam nos braços um do outro, “e viveram felizes para sempre”.
Obviamente a história não é tão simples como isto, e inclusive tem alguns pontos muito bem explorados em termos de misticismo e astronomia, e o final tem um agradável toque de surpresa. Não obstante, é visível que faltou uma ou outra mãozinha mais talentosa para aprofundar um pouco melhor o argumento. Há personagens que praticamente não têm qualquer palco no meio da história, e supostamente são importantes. O próprio vilão parece um bocadinho apagado. E nem sei muito bem o que dizer do pai da princesa e do irmão (?) ou guarda-costas (?) – desperdiçando o talentoso James Purefoy no papel. Mas a Disney é um bocadinho assim, garante sempre filmes de qualidade, mas que raras vezes arriscam muito, preferindo seguir uma fórmula mais simples e que dê garantias. O elenco é essencialmente composto por actores não muito conhecidos, o que é bom pois ajuda a arejar um bocadinho o ecrã. Se por um lado Taylor Kitsch consegue fazer um John Carter convincente, já Lynn Collins deixa muito a desejar como princesa de Helium. Se estabelecermos o paralelismo inevitável com a princesa Leia, esta coitadinha não tem ponta por onde se lhe pegue. Nos dias que correm não basta ter coxas bem torneadas, seios 3D, olhos bonitos e andar seminua durante o filme todo. Longe de mim dizer que isso não é bom! Simplesmente, um bocadinho de carisma não lhe fazia mal nenhum.
Os paralelismos com Star Wars são bastantes, quer em termos dos cenários digitais, onde mais uma vez é notória a influência que a nova trilogia teve no cinema sci-fi (continuo a dizer que como filmes da saga Star Wars são péssimos, mas como filmes de ficção-científica são muito bons), quer em termos da nomenclatura. Lá está, sem ler o livro original não sei o que consta nele, e o que é fruto da adaptação cinematográfica, mas termos com jeddak, padwar e banth são demasiado familiares, portanto das duas, uma: ou o Lucas se inspirou em Burroughs, ou esta malta nova se inspirou no Lucas.
Há alguns momentos de humor muito bem conseguidos, muitos deles graças a um cão marciano de seis patas que corre à velocidade do Speedy Gonzales, e à repetição ad nauseam de “Vorginia” – que eu não vou explicar aqui!
Em suma, John Carter é um interessante filme de ficção-científica, mas que não deslumbra. Cumpre os requisitos, mas o facto de ter jogado pelo seguro parece ter sido o que o amarrou e não deixou crescer ao nível do que a obra original merecia, tratando-se de um marco na História da ficção universal, e que inspirou os grandes criadores do século XX, onde se incluem os principais ilustradores do “fantástico” como Frank Frazetta e Boris Vallejo. O filme não se pode dizer que seja memorável, e a Disney tem consciência disso pois é visível o esforço publicitário que tem feito, quando ainda por cima pretende fazer disto uma trilogia. Mas uma coisa é certa: deixou-me com vontade de ler os originais de Edgar Rice Burroughs. E qualquer filme que consiga uma proeza dessas é por si só digno de respeito.

Pelo Pior:
A ausência de audácia. O limitar-se a ser um blockbuster para ter bons resultados de bilheteiras. As personagens secundárias completamente unidimensionais e que suscitam tanto interesse como um calhau numa paisagem marciana.

Pelo Melhor:
As extraordinárias naves movidas a painéis solares que proporcionam momentos muito inspirados e cheios de acção. O cão marciano de seis patas.

 “Mim Tarzan. Tu Jane?”

 “Yup, eu sou um cão marciano de seis patas e consigo ter mais carisma do que a maioria dos actores que entram no filme!”

 “Ah, bom! Agora a TAP tem voos directos para Marte…”


quinta-feira, 1 de março de 2012

“Imaginaerum” - Nightwish



Eu comprar um álbum de Metal??? LOL Nunca na vida! Eu odeio Metal!
E de repente: Mother of God… I am speechless!
O que é que pode levar uma pessoa culta e com bom gosto musical como THE PSY a comprar um álbum de Metal? Hum… Comecemos, tal como em todas as boas histórias, pelo princípio.
Os “Nightwish” são uma banda finlandesa de “Metal Sinfónico”. Seja lá isso o que for. Reza a lenda que a “etiqueta” que lhes foi colocada deve-se ao facto de originalmente a banda ter sido formada como um grupo de Metal, mas com uma vocalista que era… uma soprano! Estranhamente, o que tinha todos os elementos para ser mais um acidente ferroviário e descambar no esterco do costume (entenda-se: as bandas de Metal Gótico e do buhuhu o mundo é uma tragédia, vamos todos cortar os pulsos e morrer – sim, por favor, façam-no e parem de respirar o mesmo ar que eu!) acabou por resultar em algo único e com um toque cultural muito próprio, e deveras fascinante.
A primeira década de Nightwish produziu uma série de canções muito boas, misturando as tais influências de Metal com elementos de ópera, algumas baladas acústicas e um toque noir bem doseado. Até que em 2005 o mundo praticamente decretou o fim da banda quando decidiram fazer o impensável: despedir a vocalista! Tarja Turunen é o nome da menina, que tem uma voz deslumbrante, e uma intensidade desarmante. Era a alma da banda. Não vou perder tempo a falar aqui de histórias da carochinha, e quem quiser saber o que se passou pesquise na net. Bastará dizer que a banda contratou uma vocalista nova, que nada tem a ver com a anterior, e que foi muito mal recebida pelos fãs. Tendo em conta a devoção que a legião de criaturas cabeludas tinha pela Tarja outra coisa não seria de esperar.
Avancemos meia-dúzia de anos, e eis que chega “Imaginaerum”. O álbum é uma ideia do criativo da banda, um tipo feio chamado Tuomas e que se parece com o Capitão Jack Sparrow, esse mesmo, d’Os Piratas das Caraíbas. Tuomas preparou uma concepção única, querendo fazer um álbum inovador, juntamente com um filme. A ideia é contar a história da vida de um compositor e do seu mundo fantástico de sonhos.
Mesmo no crepúsculo de 2011 a banda lança o single de promoção do novo álbum. “Storytime” é tudo o que uma canção épica deve ser. A orquestração é de cortar a respiração, a interpretação é vibrante ao nível do Big Bang, e a sonoridade é uma tempestade arrebatadora. O videoclip não lhe fica atrás. É uma espécie de Branca de Neve tenebrae encontra o Cirque du Soleil e dá-se o tal Big Bang. Quando o single foi lançado apanhei-o partilhado por alguém no Facebook, mas deixei o vídeo a correr enquanto continuei a ver as fotos de gatos parvos, e aquelas coisas simpáticas do “se não partilhares esta foto desta menina sem braços, sem pernas e sem cabeça és um péssimo ser humano”. Escusado será dizer que no meio destas pérolas “Storytime” passou-me completamente ao lado. Felizmente, algumas semanas depois voltei a descobri-lo no youtube. Quando dei por mim a ver o vídeo seis vezes consecutivas apercebi-me que algo estranho se estava a passar…
 "Nightwish - Storytime"
Bom, mas depois de ouvir “Storytime” oitenta vezes dei comigo a pensar “ok, a canção é absolutamente fenomenal, mas também deve ser a única de jeito do álbum”. A maior parte das bandas investe tudo numa ou duas canções e depois enche o álbum com lixo.
THE PSY was wrong.
Aos poucos o youtube foi-me desvendando as outras canções que integravam Imaginaerum, e com cada uma eu ia ficando ainda mais fascinado. Não vou aqui falar delas todas, mas há pelo menos mais duas ou três que merecem que percamos alguns minutos a perceber por que razão eu já não me sentia tão empolgado com um álbum desde que assisti ao vivo ao lançamento da 7ª do Tio Ludovico, no dia 8 de Dezembro 1813. Sim, eu estava lá.
Imaginaerum tem uma presença orquestral muito forte, tanto pela orquestra que acompanha os membros da banda, como pelos dois coros que enfatizam muitas das músicas. Há partes do álbum que parecem directamente tiradas das bandas sonoras de Hollywood, vindas das mãos de Hans Zimmer ou de Bear McCreary. É o caso de “Arabesque”, uma música de sonho, inteiramente instrumental, que demonstra por que razão a música de orquestra é, sempre foi, e será sempre o mais nobre que a Arte Humana consegue criar. “Arabesque” tem a força dos exércitos de Alexandre, O Grande. Não estranharia que Tuomas tivesse passado várias horas a ouvir as bandas sonoras da série “Battlestar Galactica” enquanto compunha esta música. O que é que leva uma banda de Metal a colocar uma música sinfónica no meio do álbum? Simples: génio puro. Trata-se da mesma banda que já havia usado uma parte d’A Flauta Mágica de Mozart numa das suas músicas, e que conseguiu fazer uma versão Metal d’O Fantasma da Ópera, de Lloyd Webber. Há compositores que trabalham há anos com os grandes realizadores de cinema e que não têm no seu repertório uma obra como “Arabesque”.
E como é que se faz um filme de terror com uma canção? É simples, faz-se “Scaretale”. Peguem num daqueles filmes negros de Tim Burton, com música de Danny Elfman, e transformem-no numa canção de Metal, com um coro de criancinhas fantasmagóricas, e sai “Scaretale”. Esta canção arrepia ao evocar os filmes de terror a sério (e não aquelas porcarias com tripas, e sangue e louras burras), arrancando de seguida para uma sequência de riffs de Metal puro, com Anette Olzen, a vocalista, a fazer uma interpretação alucinante, retirada integralmente do manicómio de onde ela certamente fugiu. E de repente chegamos a uma passagem ao estilo filme da Disney, numa onda muito O Corcunda de Notre Dame. A quantidade de elementos musicais que esta canção cobre é verdadeiramente ridícula. Pelo meio, até chega ao ponto de ter a vocalista a gritar “squeeealing piiiiiigs”.
Já agora, lembram-se do Braveheart? Exacto, esse mesmo, o do tipo com a cara pintada de azul a gritar “LIBEDADIIIIIII”. Gostam de gaita-de-foles? Então juntem-na com uma guitarra eléctrica e sai “I Want My Tears Back”. Outra das canções surpreendentes do álbum. Começa como “meh-mais-uma-daquelas-tretas-para-gajas-góticas-que-gostam-de-choramingar-por-a-vida-ser-tão-feia-e-a-morte-tão-bonita” (a sério, morram mesmo de uma vez por todas e parem de consumir o meu oxigénio), e sem nos darmos conta temos um duelo entre gaita-de-foles e guitarra eléctrica que quase nos faz querer dançar como os Irlandeses. Tomem lá na fuça chavalas góticas! Agora levantem a saia e comecem a fazer sapateado ao estilo Riverdance!
Em suma, já deixei uma boa ideia do quão surpreendente este Imaginaerum é. O resto das canções ficam para quem as quiser descobrir. A propósito, há uma canção de Blues no meio do álbum… A maturidade musical que os Nightwish atingiram é divina. Há bandas que tocam por 30 anos, com sucesso, e nunca arriscam, mantendo-se sempre no mesmo registo. Os Nightwish arriscam, e tocam as estrelas. Este é de longe o melhor álbum da banda, e quase certamente não vão voltar a fazer um tão bom. É provável que os fãs hardcore acabem por não gostar tanto deste álbum, dada a sua complexidade, o seu espectro de abrangência e a diversidade inesperada, mas também os fãs hardcore são gente que gosta de Metal, e gente que gosta de Metal não tem direito à água que bebe.
Não querendo entrar no campo da heresia, arrisco mesmo dizer que para esta geração “Imaginaerum” é o equivalente a um “Sgt. Pepper´s Lonely Hearts Club Band”, dos Beetles, ou a um “The Wall”, dos Pink Floyd, álbuns que no seu tempo marcaram o expoente da criação musical. E já que estamos numa de heresias, devo acrescentar que apesar da voz da Tarja Turunen ser 7 milhões de vezes superior à da Anette Olzon, tenho algumas dúvidas que ela conseguisse enquadrar-se neste álbum e ter a elasticidade necessária para o mesmo.
Já agora, pela piada, eu comprei a edição limitada que traz um CD com o álbum todo em versão instrumental, o que parece ser uma forma sarcástica do Tuomas dizer: Ok, quem não gostar de ouvir a Anette tem aqui o álbum todo sem ela abrir a boca!
Coloco este artigo aqui no blogue precisamente hoje, 1 de Março de 2012, na véspera do dia que foi escolhido para o lançamento do segundo single, “The Crow, the Owl and the Dove”. Não percebo por que foi escolhida para ser o segundo single a ser lançado, pois parece-me um dos temas menos impressionantes do álbum, mas lá está, presumo que seja necessário alimentar as chavalas góticas…
Enfim, aqui ficam estas palavras para quem quiser aproveitar o meu bom gosto, e dar uma espreitadela a este magnífico “Imaginaerum”, uma obra-prima que corre o risco de passar completamente despercebida, injustamente, num mundo que parece só ter lugar para Lady Gagadas, e outras aberrações que nos são impingidas diariamente pela MTV. Imaginaerum não é Bear McCreary, não é Danny Elfman, não é Pink Floyd, não é Cirque du Soleil, nem é o Fantasma da Ópera. É tudo isto junto, numa criação maravilhosa, de uma complexidade erudita, num álbum intimista que nos leva desde um sussurro numa sinistra ruela escura até ao pico de uma montanha onde bradamos a plenos pulmões.

 "Nightwish - Arabesque"