quarta-feira, 25 de julho de 2012

“História de Portugal” (Expresso)



A História é o tema mais fascinante que existe. E a História de Portugal é um tema mais do que fascinante. Sou apaixonado por História desde miúdo pequeno, embora me confesse um gigantesco leigo na matéria. Boa parte da culpa deve-se ao meu livro da 4ª classe sobre a História de Portugal, já não me lembro da editora, mas recordo que tinha as páginas decoradas a cor-de-laranja e na capa uma fotografia da estátua de Dom Afonso Henriques que se encontra junto ao Castelo de Guimarães. Foi esse o livro que me deu a conhecer a História de Portugal, e dos reis que atravessarem as suas três dinastias mais uma.
Já li muitos livros de História, com particular enfoque no Império Romano, o meu fétiche, mas como tenho uma memória digna de uma batata, ou de um peixinho-dourado, metade do que leio esvanece-se-me da memória...
Ora, justifica-se este pseudo-artigo a propósito da iniciativa do jornal Expresso de editar uma espécie de colecção de bolso com o livro “História de Portugal”, escrito por Rui Ramos, Nuno Gonçalo Monteiro e Bernardo Vasconcelos e Sousa (Esfera dos Livros, 2009). Decidi adquirir os livros um pouco com aquele espírito de “talvez um dia destes venha a ter vontade de os ler”. Interesse nunca falta, obviamente, mas convenhamos que nem sempre é fácil ler livros de História, os quais são por vezes escritos numa linguagem pouco direccionada para o comum dos mortais. Decidir ler um livro de História é um investimento considerável. Requer disposição, tempo, e na maioria dos casos disponibilidade para procurar outras fontes/elementos (seja imagens específicas, mapas, ou referências diversas).
Peguei então no primeiro volume “apenas para dar uma vista de olhos e tentar tomar o pulso ao estilo”… e ainda não o consegui largar. Há já muito tempo que não me caía nas mãos uma coisa tão bem escrita. É deslumbrante. A facilidade na escrita é desarmante, acompanhada por um ritmo estimulante, e que à medida que vai desenvolvendo “os episódios” faz alusões a outros temas cronologicamente posteriores, e que aos poucos acabam por se ir entrelaçando.
Que surpresa tão agradável.
Além de ser um tremendo estímulo à leitura, conjuga uma diversidade magnífica de áreas, aliando muitas vezes a geografia ao enquadramento religioso, e até a ciência pura e dura, ou a própria etimologia. É difícil ser mais completo. E sempre claro, objectivo, directo, e direccionando para novas fontes que têm surgido do trabalho de investigação que se tem feito no país, mas também lá fora. Um primor.
Por exemplo, ficamos a saber que “Na Península Ibérica, em média, os homens apresentam 69,6% de ascendência ibérica («nativa»), 19,8% sefardita e 10,6% berbere”. Portanto, eu tenho 1/10 de sangue berbere dentro de mim. Pensem duas vezes antes de me chamar nomes…
Nem de propósito, sendo hoje dia 25 de Julho (Batalha de Ourique), transcrevo um excerto do extraordinário texto que desvenda aquela que é a figura maior da História da nação.
“No seguimento da batalha e do triunfo nela alcançado, Afonso Henriques passou a intitular-se rei dos portugueses (portugalensium rex). Este título, que surge nos diplomas então elaborados na corte de Afonso Henriques, remete para uma soberania sobre os indivíduos que se identificavam como sendo portugueses (ou que o autoproclamado rei identificava como tal) e não tanto sobre um território perfeitamente delimitado ou já estabilizado. Antes de ser «rei de Portugal» Afonso Henriques era rei dos portugueses (…)”
Antes de ser rei de Portugal era rei dos portugueses. Uma frase destas tem peso.
Pouco mais me resta acrescentar a esta obra, excepto talvez referir o bom gosto de usar os painéis de São Vicente de Fora para capa da mesma. Trata-se, sem margem para discussão, da mais importante obra da História da pintura portuguesa.
É uma triste partida da ironia que esta colecção surja precisamente na semana em que morreu José Hermano Saraiva, um dos homens a quem este país mais deve o descobrir e partilhar da sua História.
Dito isto, para terem ideia do quão facilmente se devora este(s) livro(s) posso dizer que até na praia o tenho lido. Termino, em tom de manifesto agrado, com uma frase que quando a li me fez chorar a rir, e que transcrita aqui, fora do contexto, ainda mais piada tem.
“É provável que Portugal tenha sido um dos últimos refúgios dos neandertais”.
Yup… quanto a isso estamos de acordo!

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Colecção Heróis Marvel – Jornal Público



É praticamente impossível ter crescido nos anos 80 sem ter consumido doses generosas de “revistas aos quadrinhos” de super-heróis. Vem este assomo de nostalgia a propósito da colecção “Heróis Marvel” que o jornal Público iniciou no dia 5 de Julho, com entregas semanais às quintas-feiras.
No total são 15 volumes que abrangem a maioria das personagens mais famosas da Marvel, misturando algumas histórias clássicas, com outras mais contemporâneas. Exemplo dessas histórias clássicas são as que constam precisamente no número de lançamento: “Homem-Aranha – Integral Frank Miller”.
Frank Miller é mais ou menos o deus dos deuses da banda desenhada de super-heróis. Conhecido pelos trabalhos magistrais em “Batman: The Dark Knight Returns” e “Daredevil: The Man Without Fear”, conquistou o pódio com a sua criação maior, “Sin City”, que à semelhança de outra das suas obras, “300”, foi adaptada ao cinema.
Embora Miller seja idolatrado pelo seu talento enquanto escritor, o que este primeiro volume da colecção reúne são as histórias desenhadas por ele no seu início de carreira, para a revista do Homem-Aranha (1979-81). Este é um livro só para os fãs “de outros tempos”. Aqueles que gostam da “silver age” dos comics, com o traço tosco, cores berrantes, e argumentos muito pouco elaborados. Curiosamente, das seis histórias que o livro traz a mais fraquinha é a única que é escrita por Miller.
É de realçar a qualidade da produção final do livro, em capa dura, com material de muita qualidade, e com uma tradução cuidada e – ALLAH É GRANDE – a não seguir o aborto ortográfico. Ainda existe gente de bem neste país.
A única crítica que posso fazer a esta colecção é o seu preço: € 8,90 por volume. Esta é uma crítica que eu faço há muitos anos à banda desenhada produzida em Portugal. O preço é totalmente descabido. É certo que a qualidade justifica-o, mas num país tão pequeno, com uma amostra de fãs tão reduzida, e onde o dinheiro não abunda propriamente é um disparate apresentar estes preços. Parece que se pretende que a banda desenhada seja apenas para algumas elites, o que é absurdo, e leva, invariavelmente, a que tudo o que é lançado neste campo em Portugal esteja condenado ao fracasso. Não fazia mais sentido publicar os livros em “capa mole” (ou lá qual for o termo técnico adequado) e metê-los a metade do preço? Enfim…
Aos potenciais interessados, a listagem completa da colecção, bem como as histórias que se englobam em cada livro, pode ser consultada em: link.
Espero que os trintões nostálgicos que por aí perduram possam matar saudades com este breve momento nostálgico. Por momento podemos voltar a ser crianças, e a “troika” é composta pelo Homem-Aranha, pelo Demolidor, e pelo Justiceiro.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

O Fantástico Homem-Aranha


 Quando anunciaram que iam lançar um reboot do Homem-Aranha dei por mim a bater com a cabeça na parede e a pensar: mas esta gente é parva? Esta parvoíce dos reboots anda na moda, e ao que parece Hollywood tem dinheiro a mais para queimar nestas idiotices. E basicamente “desliguei”. Não me dei ao trabalho de seguir as notícias relativas ao filme, nem sequer de ver os trailers. Acontece que o filme estreia e dou por mim inadvertidamente a caminho do cinema para o ver, rezando a todos os santinhos para que não fosse um barrete demasiado grande, mas sem muitas esperanças…
Acrescente-se a isto o facto de eu não ser fã dos filmes anteriores do Homem-Aranha, e estar mais do que enjoado desta moda actual de filmes de super-heróis a estrear a cada mês.
E portanto vamos ao que interessa: foi um grande barrete, daqueles de fazer arrancar cabelos com o desespero? Nope. Nada disso. Foi uma das maiores surpresas que o cinema me trouxe nos últimos anos. Fiquei completamente rendido ao filme. É extraordinário. Tão espectacular como o próprio Homem-Aranha.
Os filmes de super-heróis, para convencerem, necessitam essencialmente de protagonistas fortes, carismáticos, e que consigam perceber porque razão é que estas personagens ficcionais são tão importantes para as legiões de fãs que há décadas os adoram. Grande parte do falhanço dos anteriores filmes do Homem-Aranha deve-se a meu ver à escolha de Tobey Maguire para interpretar o super-herói mais querido pelo público de todos os tempos (ok, o Super-Homem talvez conteste este título). Tobey Maguire é uma nódoa, o maior erro de casting da história do cinema. É assim uma espécie de Mathew Broderick, mas dez vezes pior. Felizmente, em boa hora, alguém se lembrou de ir buscar Andrew Garfield para interpretar a personagem da história mais conhecida do universo dos super-heróis. Não me lembro de alguma vez ter visto este tipo em algum filme (ainda não vi “A Rede Social”), mas pelo menos aqui ele está perfeito. Compreende quem é Peter Parker, e como enquadrá-lo no mundo actual. Faz um geek inteligente, divertido, problemático, e que consegue transparecer muito bem o deslumbramento que alguém sentiria se um dia acordasse e tivesse os poderes do Homem-Aranha.
A realização ficou a cargo de Marc Webb (sim, irónico que o nome do realizador do Homem-Aranha seja “Teia”), um tipo sem qualquer currículo no mundo do cinema, e que é famoso (?) por fazer videoclips dos Green Day. No entanto, apresenta uma realização sólida, forte e cheia de dinâmica, mantendo o filme a fluir a um ritmo que nunca deixa perder a adrenalina, e que mesmo nas partes mais paradas não se torna aborrecido. Há um momento particularmente épico no filme, já próximo do final, que envolve gruas de construção, e que é simplesmente extraordinário, focando uma componente muitas vezes esquecida, mas essencial no cerne das histórias de super-heróis: a população de Nova Iorque. O momento é muito bem conseguido, e altamente inspirador.
Um outro momento muito bem conseguido é o da morte do Tio Ben, episódio fulcral na criação do super-herói. A forma como é introduzido no filme é excepcional, categórica, e muito enquadrada com a sociedade actual. Era impossível fazer melhor.
Para vilão do filme foi escolhido o Lagarto, um dos mais conhecidos inimigos do Aranha, e que à primeira-vista não suscita grande interesse, mas que acaba por conferir ao filme um realismo muito maior do que a maioria das “tristes e estapafúrdias criaturas que compõem as galerias de inimigos da maioria dos super-heróis”.
O veterano James Horner assina a banda sonora, fazendo um trabalho muito bom, e refrescante, fugindo ao seu estilo muito repetitivo e por vezes auto-plagiável.
Como não podia deixar de ser, Stan Lee faz um cameo no filme. E talvez o mais divertido de todos os que fez até aqui. Também, como em todos os filmes da Marvel, há uma cena escondida após os créditos finais, e que revela um pouco do que virá para o próximo filme.
Resumindo: “O Fantástico Homem-Aranha” é um excelente filme que não vai desiludir os fãs de super-heróis, ou de filmes de acção, e que eu aconselho vivamente. É talvez o único filme do género que se aproxima da perfeição dos Batman de Christopher Nolan, e que foge à mediocridade com que repetidamente os filmes de super-heróis nos têm fustigado (quem achou que os “Vingadores” é um bom filme é porque só reparou na Scarlett Johannson durante as duas horas, e esqueceu-se de tudo o resto).
Para terminar, devo acrescentar que foi uma enorme satisfação ver o filme em Português genuíno, não seguindo o esterco do aborto ortográfico. Obrigado a quem quer que tenha tomado essa decisão.

Pelo Pior:
“Com grande poder vem grande responsabilidade”, esta é a frase-chave da história do Homem-Aranha, e optaram por a deixar de fora do filme. É certo que trocaram-na por um discurso com algo muito semelhante, mas uma frase tão icónica não podia ficar fora de cena.

Pelo Melhor:
Andrew Garfield, que sendo um puto com pouca experiência no cinema consegue captar na perfeição o espírito da personagem, e ressuscitar um herói que merecia a dignidade no grande ecrã que não lhe tinha sido dada anteriormente.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

"A Glória dos Traidores", de George R. R. Martin


Já por aqui falei anteriormente da minha relação amor/ódio com George RR Martin e a saga “As Crónicas de Gelo e Fogo” (Game of Thrones). Tendo terminado recentemente o sexto livro da edição portuguesa (segunda parte do terceiro livro da versão original – “Storm of Swords”) devo dizer que “A Glória dos Traidores” aumentou consideravelmente o meu amor pela saga… e o meu ódio por Martin.
Depois de ter sofrido uma travessia pelo deserto ao ler o livro anterior, onde basicamente gramei 500 páginas onde nada se passou, e onde julguei que a saga tinha finalmente terminado visto o seu autor estar a entrar em “modo telenovela” para fazer render o peixe, estava receoso de pegar neste livro. Se há coisa que não suporto é ter a sensação que um escritor coloca a história a dar voltas e voltinhas só para engonhar, e basicamente é isso que acontece na primeira parte do livro cinco (versão PT). Já pouca pachorra existe para ler mais capítulos da Daenerys e o seu never-ending-safari, já pouca pachorra existe para ler mais capítulos da Arya e o seu interminável “agora vou para Norte, fui raptada, agora vou para Sul, fui raptada outra vez, agora vou para Norte, fui mais uma vez raptada”, e já pouca pachorra existe para o “não sei o que fazer com os dois Starks pequenos, e portanto vou colocá-los a dar voltas sem destino”.
Eis que começa “A Glória dos Traidores”. E começa logo mal! Ena, mais um capítulo do safari da Daenerys… tou feito. Mas logo de seguida a história começa a dar ares de querer romper com a rotina, e de se preparar para acelerar.
Faço aqui uma pausa para alertar quem estiver a ler isto que daqui para a frente vou aprofundar o que ocorre no livro, o que implica que haja revelações sobre episódios do mesmo. Quem ainda não chegou a este ponto, e não pretende “estragar a surpresa” do que vai ocorrer, deve parar de ler… NESTE PRECISO MOMENTO!
É inevitável uma pessoa apaixonar-se pelas personagens de um livro. Não é precisamente para isso que eles são escritos? Para seguirmos as tristezas e as alegrias das personagens? Os seus desafios e tudo o mais? Com Martin, é melhor pensar duas vezes… Pouco escritores têm tanto talento a criar personagens deslumbrantes. E poucos escritores têm tanto desprezo pelas personagens que criam. Martin é uma espécie de psicopata que se diverte a criar dezenas de personagens para uma história, para depois ter a oportunidade de fazer genocídios seguidos.
Quando “A Glória dos Traidores” começa, a história está de tal forma dispersa que a única coisa que a parece segurar é o confronto Lannister/Stark. E, verdade seja dita, depois do livro anterior, a única personagem que parece estar a caminhar nalgum sentido é Robb. Aguardava-se com alguma expectativa o confronto entre as duas Casas. Até que Martin decide entrar em modo genocídio. É bastante frustrante ler toda a sequência do “Casamento Vermelho”. Em primeiro lugar porque é bastante denunciada. Todo o ambiente deixa antever que “algo está prestes a passar-se”. E depois, quando traiçoeiramente Robb e Catelyn são mortos, a sensação com que uma pessoa fica é: ok, mataste as únicas personagens que não andavam feitas tontinhas a passear pelo mapa sem nada fazer. Diz-me lá quais são as razões para continuar a ler o livro? A personagem do Robb até é a menos interessante de toda a saga, mas era a única que agitava minimamente a história por estas alturas. É algo idiota ficar com a sensação de ter lido 800 páginas à espera do confronto entre os exércitos, e agora de repente… não. Mas pior do que matar Robb era matar Catelyn. É das personagens que mais despercebidas passam na história, mas provavelmente a mais interessante de todas. É a única que revela estar à margem de toda a “cena épica”, tentando mostrar um ar feroz e resoluto, mas estando na realidade em pânico, agonia e tristeza surreal. É uma personagem demasiado humana para “A Guerra dos Tronos”. E portanto, a dada altura fica a sensação que a história fica reduzida ao “cliché das criancinhas super-poderosas que andam pelo mundo a fazer coisas fantabulásticas”.
Tão ou mais cliché é ver, meia dúzia de páginas depois, um outro casamento, que resulta num outro genocídio… Aqui até podia ter havido o factor “uau”, mas quando as coisas se tornam tão sem pés nem cabeça, esse efeito dissipa. E quem acompanha a saga apercebe-se que Martin para “fingir” que foge aos clichés habituais da literatura de fantasia criou o seu próprio cliché que é “vou fazer exactamente o oposto do que toda a gente está à espera”. Mas qualquer fórmula de sucesso deixa de resultar quando é utilizada ad nauseam. As reviravoltas na história chegam a ser de tal forma forçadas que acabam por chatear.
O que vale a Martin é ele escrever muito bem. Muito bem MESMO. É um extraordinário contador de histórias, e mesmo brindando os leitores com episódios que dão vontade de “parar de ver a série a meio” consegue de um momento para o outro relançar a história. E é isso que acontece neste livro. Creio que o plano inicial estava bastante longe do rumo que Martin escolheu (se é que ele alguma vez teve uma coisa dessas), mas à semelhança da maioria dos escritores de fantasia decidiu “acrescentar mais uns quantos volumes já que isto está a vender bem”.
A pior cena do livro, e que é uma daquelas que me fará nunca colocar Martin no panteão dos escritores de fantasia, é o reencontro dos gémeos. A cena é tão estúpida e atroz que demonstra que o escritor se deleita em cenas de sexo e “gore” apenas para chocar audiências e vender, vender, vender. Truques rasteiros e verdadeiramente óbvios. Cersei está ajoelhada perante o altar onde jaz o corpo inanimado do filho. O seu irmão incestuoso regressa depois de semanas de cativeiro. E o que é que fazem imediatamente? Sexo em cima do altar onde está o cadáver do filho de ambos. O imbecil do escritor chega ao ponto de se deleitar a descrever que Cersei está com o período. Se isto é literatura de qualidade, então vou ali e já volto. É muito mau. Pornografia reles, dispensa-se.
“A Storm of Swords”/A Glória dos Traidores é um livro sem grande coerência, apesar de ser para muitos dos fãs o melhor da saga (não compreendo como). Há inclusive cenas que deixam uma pessoa a coçar a cabeça. Um capítulo termina com Sam e Gily a darem de caras com uma estranha figura montada num alce gigante, e alguns capítulos mais tarde estão ambos na Muralha, cara-a-cara com Bran, e quase logo a seguir já Sam está ao lado de Jon. Para quem se dá ao luxo de gastar centenas de páginas a engonhar onde nada se passa, causa alguma estranheza ver estes saltos na história. Mas, se o que vem na wikipedia é verdade, a versão original do livro tinha mais de 1500 páginas, que os editores cortaram para 900, portanto talvez seja de assumir que “algo foi engolido pela destroçadora de papel”.
Merece ainda particular atenção a cena da fuga do Tyrion. Porque toda ela, a meu ver, é uma sinfonia sem nexo. O anão está estarrecido na cela, borrado de medo ao ponto de se encostar à parede quando pensa que o vêm buscar para a execução. Na realidade é o irmão que o vem ajudar a fugir, o que faz sentido. Agora, quando a meio da fuga “do nada” aparece uma escadaria com 300 degraus que vai dar directamente ao quarto do pai - eu vou interromper aqui a prosa por um momento só para visualizarmos uma escadaria com trezentos degraus, isso mesmo, TREZENTOS, e ponderar a facilidade com que um anão de pernas atrofiadas a subiria, no momento em que está borrado de medo e a fugir da prisão – e, em mais uma daquelas reviravoltas “Martinianas” (ou Marcianas, se preferirmos) mata Tywin Lannister. Estamos a falar de uma das personagens com mais potencial em toda a história. Tywin é um gigante. É aquela personagem intocável, demasiado grande. E Tyrion, que até é o único gajo decente na saga toda, dá-se ao luxo de subir 300 degraus, a meio da sua fuga, para ir matar o pai, quando até aqui vimos sempre o conflito pai-filho não amado, onde sempre ficou bem claro que aquilo que Tyrion mais queria na vida era ficar bem visto aos olhos do pai. Se este o matasse numa decisão emotiva, até acharia normal, agora fazê-lo com frieza, racionalidade, E SUBINDO 300 DEGRAUS COM AS SUAS PERNINHAS ATROFIADAS PARA MATAR UM DOS MELHORES GUERREIROS/ESTRATEGAS DO REINO… simplesmente: não. É decepcionante. É Martin no seu pior. Matar personagens só por matar. Sem servir qualquer propósito na história. Sem coerência. Só para chocar os leitores nas pausas da pornografia com sangue à mistura.
Eu até arriscaria dizer que estes eram os dois piores momentos da saga, mas até tenho medo que está para vir, portanto é melhor não fazer apostas.
Mas lá está, Martin escreve mesmo muito bem. O ambiente das histórias é fantástico, sedutor, inebriante, viciante. Perdoamos-lhe todas estas cretinices para nos continuarmos a deslumbrar com a riqueza da história. E creio que o segredo é mesmo esse. Li algures num blogue que faz uma crítica ao livro que ao contrário da maioria das obras onde as personagens são o centro da história, aqui tal não acontece. As personagens são meros adornos numa história demasiado forte e vibrante que parece ter a força da Muralha, e existir por si só. O epílogo é precisamente exemplo disso. Quando Catelyn-zombie aparece, descrita daquela forma, os nossos olhos abrem-se, as narinas dilatam, e um sopro escapa-se-nos. Até pode ser um misto de espanto inesperado com o tal “lá vem a merda do cliché do vamos lá pôr aqui outra vez qualquer coisa para apanhar de surpresa toda a gente”. Mas é um facto que resulta. Tanto, que mal acabei “A Glória dos Traidores” fiz algo que não contava fazer.
Comecei de imediato a ler “A Feast for Crows”.
Eis-nos, então, aqui chegados. Não arrisco uma conclusão sobre o livro. Para muitos este é o melhor livro da série, para outros tantos é um livro tão mau que arruína a saga. Eu não me incluo na legião de “adoradores-zombie” que acham que tudo o que Martin escreve e faz é ouro (como o que Tywin caga), nem me incluo na turba ululante que lança ameaças de morte ao autor da obra. Ameaças de Morte só mesmo ao George Lucas pelo assassinato d’A Guerra das Estrelas, mas enfim, não divaguemos. Mantenho-me um ávido leitor d’As Crónicas de Gelo e Fogo. Reafirmo a qualidade da criação no âmbito do património da literatura fantástica, mas não me coíbo de tecer duras críticas a George RR Martin por optar tantas vezes por episódios de “folhetim porno-pop/gore” que acabam por diminuir uma obra que poderia rivalizar com “os melhores entre os melhores”.
Uma coisa é certa: uma obra que a nível mundial coloca tanta gente a discutir sobre si mesma, é porque tem algo que merece ser levado muito a sério. E se um escritor leva traulitadas tão apaixonadas por parte dos seus fãs... é porque está no caminho certo.