domingo, 29 de dezembro de 2013

O Hobbit: A Desolação de Smaug


Pouca gente sabe do calvário por que passou Peter Jackson nos finais dos anos 90 para conseguir fazer a trilogia O Senhor dos Anéis. Depois de muitas voltas e reviravoltas, associadas a direito de autor, dificuldades de financiamento, e perante a perspectiva de ter de cortar metade da história para condensar tudo num único filme, Jackson reuniu-se já quase em desespero com Robert Shaye, um dos administradores da New Line Cinema que lhe deu a inesperada resposta “se são três livros, não deveriam ser três filmes?”. Quinze anos passados, Jackson já vai no quinto filme da saga, havendo pelo menos um sexto a caminho.
Este segundo filme tem melhorias consideráveis em relação ao primeiro. Na altura, escrevi que O Hobbit: Uma Viagem Inesperada apesar de ser um filme extraordinário padecia do que me parecia ser alguma falta de edição, contendo demasiadas cenas alongadas que tornavam o filme algo monótono. Neste segundo capítulo, boa parte desse problema desaparece. O filme tem um ritmo muito bom, raramente tornando-se maçador. Os anões seguem a sua caminhada em direcção à montanha onde o dragão Smaug se encontra adormecido, acompanhados pelo assaltante Bilbo Baggins. Gandalf separa-se do grupo e vai investigar “as trevas” que sente estarem a despertar. E esta é uma das partes altas do filme, pois Jackson consegue fazer um trabalho fenomenal de antecipação dos eventos que ocorrem n’O Senhor dos Anéis. Esta mudança de tom também é benéfica para o filme, pois Bilbo passa para segundo plano, e a história centra-se muito mais nos anões. Se bem se lembram, eu não fiquei grande fã da prestação de Martin Freeman no primeiro filme. Devo dizer que o acho bem melhor desta vez, mas penso que isso se deve a duas coisas: por um lado precisamente pelo facto de assumir menos protagonismo, por outro lado pelo facto de este filme ter seguido um tom muito mais ligeiro e próximo da comédia.
Este segundo capítulo superou as minhas expectativas em praticamente todos os elementos. É um grandioso filme de aventuras. Ao contrário d’O Senhor dos Anéis, onde o tema é a luta épica do Bem contra o Mal, n’O Hobbit temos somente a extraordinária aventura de um grupo de anões que quer recuperar o seu lar ancestral. Ah, e já agora, o colossal tesouro que nele se encontra! Julgo que estamos perante um dos melhores filmes de aventura de que há memória. Nas alterações que fizeram à história original (o guião foi escrito por quatro pessoas – as três responsáveis pela primeira saga, às quais se juntou Guillermo del Toro), foram introduzidas as personagens de Legolas (para alimentar a nostalgia dos primeiros filmes) e de Tauriel (uma elfa ruiva toda giraça, mas que nem sequer existe em qualquer livro). As cenas passadas no lar dos elfos são o ponto alto do filme. Novamente, a equipa de Jackson demonstra que ninguém está ao seu nível em termos de criação de cenários deslumbrantes. O exotismo que marca a “sala” do trono de Thranduil é magnífico. Nada transparece melhor o sentimento de santuário natural do que aquilo. A quase ausência de luz dá-lhe um ar sobrenatural que arrepia. É muito, muito bom. Ao contrário do que eu esperava, a dupla de elfos até acrescenta bastante ao filme. São duas personagens que mudam por completo o tom da história, alternando muito bem com os anões. E depois há que sublinhar o papel de Lee Pace, que interpreta Thranduil. A maneira dele se mover, e a forma como olha para o “rei” anão são fabulosas. Muito melhor do que Hugo Weaving, que – apesar de ser um actor que eu venero – nunca me pareceu ter muito de élfico. Pelo contrário, Lee Pace assimilou na perfeição o que é um elfo Tolkienesco.
Outro dos pontos altos do filme é a passagem pela Cidade do Lago, onde finalmente temos direito a ter algum quality time numa cidade humana no meio desta aventura onde parece haver uma overdose de bicharada do folclore tradicional. E que ambiente excepcional! A fusão entre realismo medieval e fantasia é perfeita, e o cenário de neve e gelo confere-lhe um toque de poesia triste que é esplendoroso. Não sei se repararam, mas aos poucos estou a relatar tudo o que acontece no filme. Não me dei ao trabalho de colocar um “alerta de spoilers” porque… meus amigos, os livros têm décadas, se não os leram não foi certamente por falta de tempo.
Uma vez que não vou falar da banda sonora de Howard Shore, dado que repito o que escrevi há um ano: é um trabalho de preguiça, resta-me falar de Smaug, o simpático dragão que dá o título ao filme. Durante mais de um ano, a equipa de produção e os publicitários dos estúdios mantiveram grande segredo em redor de Smaug. Não o iam revelar, iam guardar surpresa, etc. Nunca percebi muito bem qual era a lógica, e agora que vi o filme… continuo sem perceber. É suposto ter alguma coisa de especial? É um dragão digital, à semelhança de todos os outros dragões digitais. Não é mais bonito nem mais feio, é igual. Tanto suspense para quê? Estava curioso quanto à voz de Smaug, uma vez que esta foi feita pelo deslumbrástico Bennedict Cumberbatch, mas, tal como aconteceu com Star Trek Into Darkness, o talento do homem foi subaproveitado. A voz está tão distorcida digitalmente que acaba por soar igual a tudo o resto (nem se nota grande diferença em relação a um Megatron, por exemplo). É pena, pois Cumberbatch já demonstrou que além de ser um génio da representação, sabe igualmente colocar a voz com um timbre que provoca calafrios, como aconteceu com Khan, em Star Trek. Imaginar a voz de Smaug igual à de Khan… Mãezinha!
E bom, está tudo dito. O filme é soberbo, ultrapassando o primeiro em todos os aspectos, ficando ao nível de qualquer um dos filmes da primeira trilogia, adensando o trabalho épico de mostrar toda a dimensão da cultura da Terra Média, e servindo como entretenimento de excelência. Como se tudo isto não bastasse, Ian McKellan entra, obviamente, no filme. Mas dele nem vale a pena falar, não é assim?

Pelo Melhor:
Saber fazer as coisas. É tão simples quanto isto. Todos os meses chegam ao cinema filmes de trampa, com orçamentos milionários, que não valem uma lata de sardinhas. Peter Jackson, até ver, tem mostrado o discernimento necessário para honrar uma obra de culto, adaptando-a à sua visão, à sua interpretação, mas mantendo o nível exigido por nós, geeks que veneram Tolkien.

Pelo Pior:

Novamente, a estupidez do botox digital. Por favor, parem de o usar! Querer retocar digitalmente as rugas e a pele dos actores só dá merda! Usem maquilhagem, ou então estejam quietos! Há alturas em que o Orlando Bloom (Legolas) parece um boneco da Disney. Já no primeiro filme isto tinha sido mau, e neste é ainda pior. Acho que a malta prefere a idiossincrasia de ter pessoas mais velhas numa altura cronológica onde deveriam estar mais novas, do que ter bonecos de plasticina saídos dos cinematics dos jogos de computador! Morte ao botox digital! Salvem as baleias! Morra o Dantas, morra, pim!


segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

200 Anno Wagner


Wilhelm Richard Wagner e Ludwig Van Beethoven não criaram a Música, mas levaram-na à perfeição. Beethoven é o maior criador musical da História. Wagner é o mais importante.
Quando Beethoven morreu tinha Wagner sete anos de vida. Ambos alemães, partilharam a vida com alguns dos maiores criadores musicais da Humanidade, mas é ao “jovem” Wagner que o Século XX deve a evolução musical que viu.
Wagner foi um visionário. Antecipou-se mais de um século a Hollywood. As suas óperas, cujos libretos foram escritos pelo próprio na sua grande maioria, criaram a extensão dramática/épica que somente os grandes filmes do cinema americano vieram muito mais tarde a alcançar. Há pouca coisa épica no cinema que Wagner não tenha feito na ópera. Até mesmo os “efeitos especiais” que tanta maravilha causaram nos cinéfilos foram trabalhados nas encenações dos seus trabalhos.
Esta exuberância foi possível graças, em grande parte, ao mecenato de Luís II da Baviera, rei que estoirou toda a fortuna da família a financiar as produções de Wagner, e a construir o fabuloso castelo Neuschwanstein (no qual eu votei para a lista das novas 7 Maravilhas do Mundo, em 2007), inspirado nas suas obras.
Em 2013 comemoraram-se 200 anos do nascimento do compositor. É triste que isto tenha merecido apenas uma breve notícia de rodapé, e que o ano musical tenha sido marcado por uma badalhoca a lamber martelos e a dançar nua em cima de uma bola. Duzentos anos antes nascia o homem que ganharia a imortalidade com a tetralogia “O Anel do Nibelungo”. Wagner pegou nos heróis da mitologia e do folclore nórdico e criou quatro óperas sem qualquer paralelo. Não há na História da Música outra realização a este nível. O Ouro do Reno, A Valquíria, Siegfried e O Crepúsculo dos Deuses só encontram obras de dimensão similar na literatura de Tolkien e outros génios.
Musicalmente, a tetralogia é de um arrojo assombroso. Não consigo imaginar o que deve ter sido para o público de então ver-se perante uma obra musical com uma pujança destas.
Têm dúvidas? Tentem então colocar-se numa época em que a sociedade estava habituada a ouvir e dançar ao som das valsas de Strauss, e de repente é confrontada com algo como isto:

Erich Leinsdorf "Prelude Act I" Die Walküre


Impressionante, até mesmo nos dias de hoje. Não colocarei aqui aquela que julgo ser a música mais perfeita jamais criada por um ser humano, a famosíssima Cavalgada das Valquírias, pois prefiro aproveitar esta oportunidade para partilhar outras músicas menos conhecidas.
O segredo de Wagner foi criar o leitmotiv, uma técnica de composição que associa um tema em particular a uma das personagens da ópera. Foi isso que os compositores do Século XX aprenderam a fazer, e foi com essa técnica que John Barry desenvolveu o tema de James Bond, e que John Williams (o homem responsável pela minha devoção à Música) desenvolveu a marcha inconfundível de Darth Vader, ou o tema de Indiana Jones. Wagner foi o pai de tudo isso.
O autor está muitas vezes conotado a questões bastante controversas. O facto de ser o compositor de eleição de Hitler levou a que ainda hoje a sua música seja mal recebida em Israel, onde inclusive o maestro Daniel Barenboim recebeu ameaças de morte por conduzir temas de Wagner. Foi um homem muito político, e controverso, mas pretendo falar apenas da sua obra.
A minha paixão pela música clássica começou precisamente com Wagner, há muito anos, quando na minha adolescência comprei, no Jumbo de Cascais, um CD por 800 ou 900 escudos (eu ainda sou desse tempo…) que tinha uma compilação das suas principais obras tocadas pela Royal Philharmonic Orchestra, conduzida por Vernon Handley. Não julguem que referir a orquestra e o nome do maestro é “overdose”. Conduzir Wagner não é para qualquer um. Está somente ao alcance dos grandiosos. Sempre que quiserem inspirar Wagner na sua plenitude, procurem por Erich Leinsdorf.
Para se perceber o porquê da importância de ter o maestro certo, e a orquestra certa:
Wagner Götterdämmerung - Siegfried's death and Funeral march Klaus Tennstedt London Philarmonic


É arrepiante, e comovente, ver Tennstedt a dirigir a Filarmónica de Londres. É porventura a música mais poderosa da História. Um dos prodígios da criação Humana. No final, Tennstedt está exausto. As lágrimas caem-lhe pelo rosto. O suor escorre-lhe da testa. O corpo treme. Isto é dirigir Wagner. Estamos no domínio dos deuses. Depois disto, nada resta…

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Esta raiva que trago contida…


Evito falar de política neste blogue. Sempre olhei para esta aventura bloguística como puro entretenimento. Um espaço onde escrevo algumas parolices sobre filmes, livros, e assuntos diversos, para partilhar com meia-dúzia de amigos que têm paciência para ler estas baboseiras.
Mas há momentos que nos transportam para outro estado de espírito e nos fazem reflectir sobre questões mais sérias. E estes últimos dias têm sido propícios a reflexões dessa natureza.
A faísca – chamemos-lhe assim – que despoletou este texto foi “mais uma” destas notícias que vão saindo diariamente, e que me levam a ter vergonha do meu país e de ser Português. E quem me conhece, e está habituado ao meu fanatismo patriótico, sabe bem que não escrevo isto de ânimo leve. Saiu há uns dias no Diário de Notícias um pequeno artigo a dar conta de o Estado ter assumido uma dívida de 17 milhões de Euros, ligado ao Luís Filipe Vieira e ao BPN. Esta notícia passou completamente em silêncio. Só dei por ela, dias mais tarde, graças a um programa de comédia (veja-se a ironia) na rádio, da autoria do Nilton. Artigo no DN: link.
A esta junta-se “mais uma”, que também há dias passou meio em silêncio, a dar conta da contratação do Secretário de Estado da (falta de) Cultura relativa a um assessor, com 24 anos, e cujo impressionante currículo continha a participação em três workshops “de qualquer coisa”. Não sei quanto aufere um assessor de Secretário de Estado, mas estou certo que muito mais do que o que ganham os Engenheiros com 10 anos de experiência em Portugal. Artigo no Expresso: link.
Querem mais notícias? Ontem mesmo anunciaram que o Estado penhora diariamente 125 000 Euros a pensionistas que têm dívidas por pagar. Atenção à palavra: diariamente. É nisto que muito pouca gente pensa. As pessoas que têm agora 65-70 anos estão a estoirar as parcas poupanças que juntaram ao longo da vida para conseguirem valer aos filhos, que aos 40 viram-se sem emprego, sem dinheiro para pagar a casa, sem dinheiro para sustentar os filhos. Quando estas pessoas de 65-70 chegarem aos 80 já terão gasto todas as suas poupanças. Os filhos não terão dinheiro, e nessa altura quem vai garantir que estas pessoas têm onde morar, o que comer, e acesso aos medicamentos de que necessitam? Nisso não importa pensar.
Como dizia, sabiamente, o Nilton: indignem-se com a Pepsi e com o Ronaldo, porque isso é que é importante.
Podia passar aqui vários parágrafos a reflectir sobre muitas mais notícias, mas ninguém está verdadeiramente interessado em notícias. Pouca gente lê jornais, ou quer saber do que se passa para lá do tapete da entrada.
Falaria, apenas, de um tema deveras sinistro que tem estado a merecer algum mediatismo por parte da comunicação social. Falo do exame que os professores têm que fazer por estes dias para se poderem candidatar futuramente a leccionar nas escolas Portuguesas. Quando ouvi falar disto pela primeira vez, assumi que fosse um exame para os novos candidatos a professores, malta recém-licenciada que pretendesse dar aulas. Ainda pensei “isto até faz algum sentido”. Qual não foi o meu espanto, quando vi uma reportagem onde entrevistavam uma professora contratada, a dar aulas há 14 anos, com Mestrado e Doutoramento, e a fazer todas aquelas formações obrigatórias anuais, e fiquei a saber que é maioritariamente a estas pessoas que este exame se destina. Professores contratados, alguns a dar aulas há mais de duas décadas. Isto é aberrante… Gostaria de saber que exame é que o Ministro da Educação fez para estar habilitado a assumir as funções que desempenha. Ou qualquer um dos membros do Governo. Já tivemos o exemplo do brilhante currículo do Senhor Relvas, e tanto quanto sei o currículo do Primeiro Ministro também não é exactamente por aí além.
E é por isto que trago esta raiva contida cá dentro. Raiva por ver um país sem-vergonha, onde há dinheiro para gente medíocre, e para os bolsos dos “grandes e poderosos”, enquanto se humilham professores, e se faz os velhos andar na penúria. Entenda-se: não é só contra esta gente sem carácter que sinto uma imensa raiva. Gente desta há em todo o lado. Esta raiva é mesmo para com os Portugueses em geral, sempre dispostos a mandar vir, mas que continuam a votar nesta gente, entregando-lhes perpetuamente o poder. Ainda nas recentes autárquicas se viu. Não é possível entender um povo tão acéfalo, tão intelectualmente débil, tão idiota, cujo grande desígnio nacional é “irmos todos ao Brasil”! Sim, vamos a isso! Vamos todos ao Brasil! E façamos vídeos no YouTube contra a Pepsi, e contra o Blatter, e contra toda a gente que disser mal do Ronaldo. Que se lixem todos estes Velhos do Restelo, sempre a queixarem-se de tudo.
Penso muitas vezes na vontade que tenho de correr esta corja à bofetada! E meter as coisas na ordem. E assusto-me por pensar nisto. Quantos déspotas ascenderam ao longo da História precisamente por estarem revoltados com “o sistema” e quererem mudar as coisas?
Declaração de intenções: eu não tenho partido político. Não sou de Esquerda, nem de Direita. Simplesmente, não subscrevo a teoria de não ir votar.
Mas já que falo de notícias, aproveito para referir que está novamente a decorrer a campanha online do Banco Alimentar: link. É possível que também esta notícia passe apenas no rodapé dos telejornais. Precisamos de todo o tempo disponível para dar tempo de antena às coisas importantes. Sabem que a TAP está a pensar deixar de servir Pepsi a bordo dos aviões? Espectáculo! Orgulho nacional! Portugal Forever!
Enfim… Resta-me pedir desculpa à tal meia-dúzia de amigos incautos que aqui vem à procura de uma qualquer patetice para animar, e hoje viu-se confrontada com conteúdo de teor político. Ou será social?
Termino, nesta estúpida angústia, neste render-me às evidências, com a típica e imbecil melancolia Portuguesa, citando aquele que foi o Homem Maior da minha língua.

Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.

Senhor, falta cumprir-se Portugal!

terça-feira, 12 de novembro de 2013

O Jogo Final (Ender’s Game)


Suspiro… Já me tinha convencido que o único filme verdadeiramente mau que este ano ia ver ao cinema era o Wolverine. Parece que me enganei…
Comecemos pela premissa deste “Jogo Final”. É baseado numa saga de livros de ficção-científica dos anos 80. No futuro, a Terra vê-se atacada por um exército de formigas alienígenas voadoras, e a forma que a Humanidade encontra de combater esta praga, é treinar crianças através de jogos de computador e outro tipo de desafios. Agora que leio o que acabei de escrever, pergunto-me: eu fui mesmo ver isto ao cinema? Ok, Wolverine, volta, estás perdoado. Não, mentira, não estás. Continuas a ser o pior filme do ano.
Bom, vamos ao que interessa. Detesto tudo na história. Não conheço os livros, e até acredito que sejam interessantes, mas esta adaptação cinematográfica é uma catástrofe somente comparada, exactamente, aos filmes do Wolverine. Bom, nesse ao menos não há formigas alienígenas… Enfim, confesso que me enjoa esta fixação que alguns autores (sobretudo de ficção-científica) têm com a questão de as grandes respostas da Humanidade perante uma grande ameaça estarem nas mãos de criancinhas prodigiosas. Julgo que os psicólogos terão muito com que se entreter com o que verdadeiramente se passa na cabeça destes escritores. Crescer faz parte da vida. Viver com medo da idade, e fixado na eterna juventude, nunca dá bom resultado.
Pois bem, estas criancinhas de 10 anos são grandes prodígios que passam muito tempo agarradas à Playstation, o que as torna tacticamente geniais, e depois fazem uma espécie de “Jogos Sem Fronteiras” no espaço, sem gravidade, et voilá, estão aptas a derrotar as maléficas formigas alienígenas. E pensar que eu julgava que escrever “dinossauros gigantes à porrada com robots” era mau demais… Já vou na quarta vez a falar em “formigas alienígenas”. Repito: suspiro.
Passemos aos outros aspectos do filme, já que o argumento é tenebroso quanto baste. Os actores conseguem ser igualmente horripilantes. Hollywood quer convencer-nos à força que este jovem Asa Butterfield é a nova criança-prodígio do cinema (volta e meia lembram-se de inventar mais uma), mas eu confesso que depois de o ver em dois filmes, continuo sem perceber o que ele tem de especial. Não é mau, mas também não é bom. Depois temos um conjunto de actores que são tão maus, que parecem… epá, sei lá! Faz-me ter pena das formigas alienígenas! Nem o Harrison Ford escapa. Faz seguramente o papel mais idiota da sua longa carreira, e passa metade do filme com aquela cara de “como é que eu me meti nisto?” Depois aparece SIR Ben Kingsley, que é fenomenal, mas que neste filme… ok, vamos esquecer que ele entrou no filme. Como cereja em cima do bolo, temos uma data de criancinhas, cada uma mais irritante que a outra, e que são tão convincentes enquanto génios como um bebé de dois anos a comer plasticina. Até que chegamos ao único, inigualável, incomparável, insubstituível (acreditem, formigas, neste momento estou a torcer para que vocês exterminem a Humanidade) BONZO MADRID! Sim, é mesmo esse o nome da personagem. Acrescente-se que é uma espécie de rufião com menos de metro e meio, e que gosta tanto de fazer caretas como o Monstro das Bolachas. Faz lembrar o Gonzo, dos Marretas. Tudo bom demais.
A realização de Gavin Hood também não é nada de especial. Não ofende, mas tampouco deslumbra. Entendeu ser realizador e autor único do argumento, e pelo menos nesta segunda tarefa meteu a pata na poça à grande, porque além de má, a história tem tantos buracos como um queijo suíço.
 A música ficou a cargo de Steve Jablonsky, outro dos discípulos do Mestre Zimmer, e que já fez um trabalho de excelência, compondo inclusivamente um dos melhores temas da última década: link. Neste caso em concreto, até é uma das poucas coisas boas do filme, em particular o violoncelo electrónico que marca o tema central do filme: link (a partir do minuto 2’25). Sublime. Memorável. Intimista. Bonito.
Eu até nem queria arrasar o filme por completo. Estou certo que muita gente o vai ver e sai de lá a pensar até nem foi mau de todo. Mas parece-me ser mais um caso de milhões e milhões de dólares desperdiçados numa coisa medíocre. Se me perguntarem se recomendo o filme: não. Se me perguntarem se faço tenção de o voltar a ver: não. Se me perguntarem se merece uma sequela: não. Julgo que por aqui digo tudo…
Tenho pena, mas nada no filme é minimamente convincente. Mais vale ler os livros (repito: não os conheço), pois esses ao menos ganharam os prémios Nebula e Hugo, os principais da ficção-científica. Para terminar, este está a ser o ano do bombardeamento cinematográfico em redor da ficção-científica. Tenho dúvidas que tenha havido outro ano com tanta sci-fi a chegar aos cinemas. Isto deixa-me triste, porque sendo um grande fã do género, esta banalização vai destruir-lhe boa parte da mística, e resultar, incontornavelmente, em muito lixo a exibir no grande ecrã.


Pelo Melhor
Algumas das cenas do treino na câmara sem gravidade resultam num bailado espacial muito bonito, acompanhado pelo magnífico violoncelo electrónico que evoca imediatamente  Johann Sebastian Bach.

Pelo Pior
Não, o pior até nem são as formigas alienígenas. O pior é mesmo a sucessão de disparates e a total ausência de um mínimo de coerência na direcção de actores, que parecem todos estar a representar (?) em frente a um espelho, numa sala vazia, e a improvisar falas desconexas. Acho que até o Jar Jar Binks consegue ser mais credível (ugh!).




quarta-feira, 6 de novembro de 2013

“Emperor – The Gates of Rome”, de Conn Iggulden


“You all know me,” Marius bellowed. His voice carried far in the silence. “I am Marius, general, consul, citizen. Here, before the Senate, I claim my right to hold a Triumph, recognizing the new lands my legion has conquered in Africa.” (…) Gaius noticed that the other senators looked to Sulla to respond. As the only other consul, it was his word that carried the authority of the city.

O jovem Gaius tem 10 anos e passa o tempo a percorrer a extensa propriedade do seu pai, Julius, senador de Roma. Tem por companhia o jovem Marcus, órfão, protegido de Julius, e Tubruk, o tutor dos rapazes. Julius entende ser chegada a altura dos jovens aprenderem as artes da luta, e contrata um velho gladiador para os treinar. Um dia Gaius herdará tudo o que pertence ao seu pai. Um dia tornar-se-á o homem mais importante da História de Roma, talvez mesmo o homem mais importante da História do mundo Ocidental.
A Ficção Histórica é um dos meus géneros literários preferidos. Se associarmos a isso o período de Roma clássica, tanto melhor. E então se tiver a personagem de Júlio César no centro da acção, é como perguntar ao macaco se quer mais um cacho de bananas.
Mas este livro esperou por mim durante sete anos. Xiça, o tempo passa mesmo depressa…
E pensar que “ainda ontem” saí da livraria com ele debaixo do braço e a pensar “este vai ser um dos próximos”.
Mas será que valeu a pena esta espera?
Iggulden é um criador de personagens magnífico, ao estilo de George R R Martin. A força toda deste livro reside nas personagens apaixonantes, se bem que noto um pormenor curioso. Todas as personagens são mais interessantes do que César, a personagem principal. Dá a sensação que é uma forma de o autor dizer “eu sou tão bom a criar personagens, que aquelas que são da minha autoria põem a um canto alguém tão poderoso como Júlio César”.
Não paremos nas fascinantes personagens que o livro tem. Olhemos também para o ambiente em que o escritor tão eloquentemente as coloca. Há episódios escritos com uma mestria genuína, como a altura em que os dois rapazes capturam um corvo, e o tutor tem com eles uma longa conversa onde lhes explica que em cativeiro o espírito do animal quebrar-se-á, acabando por levar à sua morte. Ou um episódio onde um dos professores lhes demonstra as movimentações militares dos grandes generais romanos e gregos, recorrendo a figuras azuis e vermelhas para o exemplificar. A descrição é de tal forma vívida que sentimos que somos nós que estamos a mover as figuras coloridas.
E não é somente isso que sentimos enquanto lemos o livro. O que dizer de uma passagem inteira onde é detalhadamente descrita a amputação de um braço? Mas, entenda-se, com o conhecimento e ferramentas apropriados para a altura. Não há cá anestesias, nem coisa que lhe valha! A cena é de tal forma gráfica que eu só desmaiei umas três vezes até conseguir chegar ao fim do capítulo.
Este é um dos grandes livros de ficção histórica que me passaram pelas mãos. Porventura a personagem de César surge menos interessante neste volume, porque existem mais quatro a seguir a este. Não bastaram as 600 páginas deste The Gates of Rome, o nosso amigo entendeu que eram necessários mais quatro livros para contar a história da única pessoa cuja importância para o Universo pode apenas ser comparada com a do autor deste blogue. E é precisamente aqui, depois de toda esta vénia que lhe acabo de fazer, que entro na parte de apontar o dedo ao que de mal o livro tem.
Para se escrever boa ficção histórica é preciso um extenso estudo do período onde a acção se desenrola. É preciso conhecer as personagens-chave que resistiram estoicamente à voragem do Mestre Tempo. Não me passa sequer pela cabeça que alguém com a qualidade deste autor cometa erros grosseiros. Aliás, no fim do livro ele dá-se ao trabalho de publicar uma nota a explicar as suas opções. E estas opções passam em grande medida por alterar a cronologia e as relações entre personagens históricas como bem lhe apeteceu. Se isto fosse feito em relação a uma figura pouco conhecida, ou num período pouco documentado, a coisa ainda passava. Mas estamos a falar de uma das pessoas mais marcantes dos últimos 2500 anos, e situada no local onde o Conhecimento e os historiadores imperavam. Até acredito que boa parte das coisas passem despercebidas à maioria dos leitores, mas tal como eu disse, a personagem de César fascina-me desde que me lembro. Bastará, por exemplo, referir que o momento de maior espanto surge precisamente no final do livro quando é revelado que – SPOILER – o jovem Marcus é na realidade Brutus. Ora, tendo em conta a importância crucial da relação histórica entre estas duas personagens, não é concebível que um autor decida “alterar os factos só porque assim o entende fazer”. Para perceberem o que estou a dizer, Marcus surge como o rapazinho ligeiramente mais velho do que Gaius. Historicamente, há estudiosos que defendem a tese de que Brutus pode ter sido filho de Júlio César, resultando de uma relação na sua adolescência. Quando Brutus nasceu, César tinha 15 anos…
Uma coisa é um autor dar liberdade à sua imaginação, pois somente isso é capaz de criar um livro de ficção, outra coisa é retirar personagens do contexto histórico, e adulterar a narrativa a seu bel-prazer.
Este é apenas o facto mais chocante no livro, mas há muitos outros. E quanto mais uma pessoa lê sobre este período, mais incongruências descobre. Por isso, fico com este gosto agridoce. Por um lado é um livro fabuloso, com uma narração viciante, cheia de cor e vida, plena de personagens ricas e muito marcantes, por outro lado é o mesmo que estar a ler um livro sobre a fundação de Portugal, que decorre no ano 1750, em pleno Século das Luzes, e cujo primeiro rei tem por nome Asdrúbal Anatólio.
Veredicto: estou cheio de vontade de pegar nos restantes livros e continuar a ler esta ficção de altíssimo nível, mas ao mesmo tempo sei que ao fazê-lo vou estar sempre de pé atrás, e com a bílis a subir-me pelo esófago acima.

Bom, como diria certa pessoa… alea jacta est!

terça-feira, 29 de outubro de 2013

«de tudo o que fui e de tudo o que me espera»

Dissera-o, rindo-se atrás do vidro de um copo de vinho, em Veneza, na última noite de fim de ano em que estiveram juntos. Ela tinha insistido em regressar ali, onde passara vários fins de ano da sua infância, para ver a exposição dos surrealistas no palácio Grassi. Quero que me leves ao melhor hotel dessa cidade fantasma, pediu, e que deambules comigo de noite pelas suas ruas desertas, porque só nesses dias é possível vê-las assim: está tanto frio que os turistas de pé descalço morrem congelados nos bancos, toda a gente se refugia em hotéis e pensões, nas ruas só há gôndolas baloiçando silenciosamente nos canais, a rua dos Assassinos parece mais estreita e sombria do que nunca e as quatro figuras talhadas em pedra da Piazzetta aproximam-se mais umas das outras como se tivessem um segredo que quem as contempla desconhece. Quando era uma jovenzinha, fugia para passear com cachecol e gorro de lã, ouvindo o eco dos meus passos, enquanto os gatos me olhavam dos portais escuros. Há muito tempo que não vou a essa cidade e agora desejo fazê-lo de novo. Contigo, Faulques. Quero que me ajudes a procurar a sombra dessa menina, e depois, de volta ao hotel, ma cosas de novo aos calcanhares com agulha e linha, silencioso, paciente, enquanto fazes amor comigo com a janela aberta e o frio da lagoa eriçando-te as costas, com as minhas unhas cravadas nelas, até sangrares e eu me esquecer de ti, de Veneza, de tudo o que fui e de tudo o que me espera.

Há uma pessoa que escreve assim.

(odeio este Espanhol…)


segunda-feira, 28 de outubro de 2013

“Três Sombras”, de Cyril Pedrosa

Não é muito hábito falar por aqui de banda desenhada, apesar de ser algo de que gosto muito desde novo. Essencialmente a escola franco-belga e os comics americanos. Não deixa de ser curioso que a única BD que nunca me apelou verdadeiramente é precisamente a japonesa, e os seus manga que tanto sucesso fazem, e que de certa maneira acabaram por “infectar” todo o estilo de BD a nível mundial nas décadas mais recentes.
Este artigo esteve quase para o não ser. Explico: quando acabei o álbum, pensei: gostei disto, podia escrever sobre ele lá no blogue. Mas, pouco depois: hum, não sei se alguém se interessa pelo tema. Até que por fim, quem me emprestou o livro – o poderoso Sr. Fusão (que também responde pelo nome de código “Muafa”) – me disse: epá, eu até curto ler as tuas cenas, portanto fala lá sobre o livro no blogue!
Ok, vamos a isso!

“Três Sombras” é um livro grande, em particular para quem está habituado ao formato convencional das 30-40 páginas dos álbuns europeus. Mas tem razão para o ser, pois o autor quis contar – sem pressas – a extraordinário odisseia de um pai e de um filho. Comecemos, então, como todas estas nossas histórias começam: Era uma vez um casal que vivia numa casa de campo com Joaquim, o pequeno filho de ambos que costumava acompanhar o pai no dia-a-dia, vivendo uma genuína felicidade nas mil e uma aventuras com que se deparava na floresta. Certo dia, surgem três cavaleiros à distância, deixando a família em alerta. Quem serão? Nunca se aproximam da casa, e as suas longas sombras projectam-se a partir do horizonte. O pai de Joaquim tenta correr na direcção dos cavaleiros, mas rapidamente percebe que nunca os consegue alcançar. É então que começam a perceber que “algo estranho se passa”, e que o pequeno Joaquim pode correr perigo… A Mãe decide então ir até à cidade, falar com uma velha bruxa (?) para tentar proteger o filho destas estranhas criaturas. Com a certeza de que as sombras estão atrás de Joaquim, o pai não vê outra alternativa a não ser pegar no filho e tentar fugir para longe. É essa fuga que os vai levar numa extraordinária odisseia, que começa a bordo de um navio cheio de personagens magníficas, que muitas vezes comunicam apenas com um olhar, e que nos compelem a devorar cada traço em cada vinheta.

Não vou contar o resto da história, pois é aqui (ao embarcarem no navio) que ela verdadeiramente começa, e não quero estragar a surpresa a quem vai ler o livro. Bastará dizer que vale a pena. Centremos, então a atenção no traço (ou, usando uma linguagem mais técnica, na bonecada). Eu sou, sempre fui, e sempre serei grande fã de banda desenhada a preto-e-branco. Para mim, a “Savage Sword of Conan” desenhada por John Buscema nos anos 70 continua a ser a obra-prima da história da BD. Não é muito fácil definir o estilo de Cyril Pedrosa. Creio que uma descrição adequada será classificá-lo como uma espécie de esboço a lápis, que num primeiro olhar parece ser uma coisa muito simplista e demasiado “cartoonesca”, mas que aos poucos vai revelando uma complexidade na riqueza dos pormenores que compõem cada imagem. O trabalho é muito gráfico, composto por perspectivas forçadas e muito movimento, como é o caso do fumo que parece feito de argolas de algodão ondulantes, e enriquecido pelas sombras (duh!, não se esperaria outra coisa dado o título do livro) que ganham particular dimensão num maravilhoso preto-e-branco que alterna entre pranchas quase brancas, com meros elementos para dar continuidade à história, e imagens negras, carregadas de expressividade ameaçadora e que sabem reclamar na perfeição a atenção dos nossos olhos. São, certamente, necessários muitos anos de trabalho para chegar a um traço tão simples, tão despojado de acessórios supérfluos.
Quem ler isto até fica convencido que eu percebo alguma coisa do que estou a dizer, hehehe…

Veredicto: um trabalho muito bom, quer ao nível da história, quer ao nível visual, tratado de uma forma que explora os sentimentos familiares num misto de magia e realismo, bastante original e que nos transporta para uma aventura cativante, numa perspectiva diferente, e muito apelativa.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Gravidade


Respiremos fundo! Ainda há esperança para o cinema. Podem cancelar o atentado terrorista contra Hollywood. Mas só desta vez! E graças a um Mexicano.
Que interesse pode ter um filme sobre astronautas à deriva no espaço? Muito pouco, a menos que esteja nas mãos de um grande realizador. É o caso.
Gravidade pôs-me as orelhas em pé assim que vi o primeiro trailer. Parecia intenso. Mas deixava uma pergunta no ar: cinco minutos de catástrofe espacial conseguem ser projectados de forma interessante para um filme de 90 minutos? Depois houve outra coisa a chamar-me a atenção. Um nome: Alfonso Cuáron. O realizador do fabuloso “Os Filhos do Homem”. E depois houve, não um, mas dois nomes a fazer-me torcer o nariz: George Clooney e Sandra Bullock.
O cavalheiro é um bom actor, mas é daqueles que em 90% dos filmes se limita a fazer… dele próprio. Há muitos bons actores que infelizmente decidem enveredar por este caminho. George Clooney é muito bom a fazer de George Clooney. Mesmo no espaço, durante o Apocalipse, against impossible odds, ele mantém o ar cool, a voz pausada, e o ar imperturbável de Bond, James Bond. E, como esperado, é isso que se limita a fazer no filme. Não é mau. É simplesmente mais do mesmo.
Já no caso da dama, não me lembro de qualquer filme em que a tenha visto e que fosse algo mais do que meramente “meh”. Em boa verdade, devo dizer que não vi The Blind Side, filme onde Bullock ganhou um Oscar. Em suma, associo-a sempre a uma espécie de “adolescente tardia que passa metade do tempo em comédias rasca aos gritinhos”. Nada disso se passa em Gravidade, onde ela tem uma prestação excelente, embora eu não alinhe pelo coro de deslumbrados que já anda por aí a pulular na Net a berrar para lhe darem o segundo Oscar.
Mas esqueçamos os actores, já que o verdadeiro protagonista do filme é o realizador. Cuáron desarma-nos com uma obra excepcional do ponto de vista cinematográfico. Este filme é um manual de como fazer cinema, associado à constatação do quão avançada está a tecnologia ao serviço da Sétima Arte nos dias que correm. Tudo em Gravidade é o sonho de qualquer cinéfilo. O suspense no filme é sufocante, e é todo conseguido graças à montagem perfeita de cenas realizadas com uma serenidade desconcertante. 99,9% dos realizadores faria uma série de sequências caóticas, com tudo a inundar o ecrã de flashes, e gente aos gritos, e explosões à Michael Bay. Cuáron limita-se a fazer planos de 20 minutos ininterruptos em que a câmara acompanha discretamente a acção, aproximando-se e afastando-se com uma placidez memorável. Isto é um ensaio de cinema. Querem aprender a realizar na perfeição? Vejam este filme. A própria realização transporta o peso do título do filme. É magnífico. Há cenas de uma beleza difícil de expressar por palavras. Já todos sabemos que nada existe no Universo mais belo do que a Terra vista do Espaço. Cuáron limita-se a recordar-nos disso. Há longos planos onde apenas se filma o planeta, acompanhado de um silêncio prolongado. E é isto que continua a justificar a ida às salas de cinema. Uma aurora boreal vista do Espaço, em tamanho gigante, é de suster a respiração.
Querem que vá já à música, ou deixo-a para o fim? Ok, de acordo, guardemos o melhor para o fim, e centremos a atenção então na história. O filme não precise de história. Quase não tem argumento. Dispensa-o. Tem Cuáron, é tudo o que é preciso. Mesmo assim, nos poucos relances em que somos recordados de que existe uma história a decorrer, há ainda tempo para algumas (breves) reflexões sobre o espírito Humano e a sua força anímica. São toques leves. Meras pinceladas. Não queremos estragar a obra-prima com demasiado melodrama ou lamechice. Tomem lá um cheirinho, e voltemos ao orgasmo visual.
Destaco, em particular, as cenas filmadas a partir do interior do capacete da astronauta. São maravilhosas, de um realismo que quase nos dá vontade de esticar o braço para vermos a nossa mão através da viseira do capacete.
O filme, como é óbvio, não é isento dos exageros típicos de Hollywood, mas que se pode fazer? São as regras do jogo. Um filme destes sofre pelo facto de existir num tempo onde os imbecis gostam é de ver “Twilights” e “Transformers”.
E já agora, para os inúmeros senhores e senhoras que andam ocupados a criticar o filme pela quantidade de “erros científicos” que tem, permitam que cordialmente vos mande à merda. Atentamente, THE PSY.
Ora, vamos à música que se faz tarde. Steven Price. Quem é este tipo? Não faço ideia. Este ano tem sido uma maravilha para mim. A quantidade de compositores desconhecidos que estão a dar cartas, e de qualidade, era algo que eu não antevia. É certo que se está a desenvolver um “estilo próprio” no cinema americano, onde todas as músicas parecem vir do mesmo sítio (defeitos da massificação do electro), mas há casos em que tal merece uma atenção especial. A banda sonora de Price é o complemento perfeito à realização de Cuáron. Enaltece inebriantemente aquelas cenas de suspense que nos deixam a tremer de antecipação. Com uma beleza rara, uma diversidade assinalável, e sem nunca, nunca, nunca, cair na tentação de avançar para uma peça cheia de exageros para “fazer muito barulho porque aimeudeusvamostodosmorrer”. Nunca cede ao histrionismo básico que tão popular se tornou no cinema contemporâneo. Esta é uma das bandas sonoras que maior identificação projecta sobre o filme. Aqui, mais do que em qualquer outra obra, o filme é indissociável da música. Intimista, boa parte dos temas só podem ser entendidos vendo o filme, ou ouvindo-os de olhos bem fechados.
Chegados aqui, resta-me sublinhar a inspiração que este filme é. Geralmente necessitamos de um grande argumento, um grande realizador, e grandes actores para termos um grande filme. Alfonso Cuáron altera as regras do jogo. Mostra que é possível ter uma história muito insípida, sem grandes diálogos, e sem grandes desempenhos, e mesmo assim sentir a magia do cinema. Meus amigos, se há pessoa que costuma mandar vir pela falta de bons argumentos no cinema sou eu. No entanto, se querem ter a história como vector principal, então sugiro que peguem num livro e saciem a vossa sede. É reconfortante ver que ainda há realizadores capazes de arriscar algo novo. Visual e tecnicamente, Gravidade é um dos filmes mais perfeito de todos os tempos. O resto… são detritos espaciais.
Corram a uma sala de cinema. Vejam o filme. Ouçam a música. Esqueçam tudo o resto.

Pelo Melhor
A sinergia entre realizador e compositor, que resulta numa das obras audiovisuais mais intensas desde que a palavra foi inventada. Se têm dúvidas, fica este trailer que é na realidade um excerto de um minuto do filme.

 Pelo Pior

Os símios mentecaptos e privados de oxigénio que me obrigaram a ver o filme em 3D. Existe um lugar especial no Inferno para gente desta. Gente que gosta de cinema 3D está na mesma escala evolutiva do que gente que escreve com o acordo ortográfico: merecem levar com um satélite Russo nos cornos! E sim, eu sei que vocês estão a ler isto, e portanto caganeira de babuíno para vocês! >:(

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

“O Vale do Terror”, de Arthur Conan Doyle


- É uma mensagem cifrada que o Doutor Watson e eu tivemos ensejo de resolver. Mas porquê… o que há com esses nomes?
O inspector olhou alternadamente para nós dois com ar atónito.
- Apenas isto – disse ele. – O senhor Douglas, da Mansão Birlstone, foi assassinado hoje de manhã, em circunstâncias espantosas.

Sherlock Holmes. Poucas personagens da história da ficção dispensam tão facilmente qualquer tipo de apresentação. O detective do número 221B de Baker Street é imediatamente visualizado mesmo por quem nunca tenha lido uma única página das suas aventuras.
Familiarizei-me com o Sr. Holmes ainda bastante novo, graças a uma daquelas “colecções juvenis”. Depois disso, inevitavelmente, a televisão e o cinema ajudaram a que o senhor do cachimbo nunca saísse inteiramente de moda. Ora, como referi recentemente noutro post, Holmes está novamente em alta, e à conta disso a nostalgia tratou de me seduzir para o regresso à obra escrita de Sir Arthur Conan Doyle.
A Bertrand teve a feliz e muy nobre ideia, nos anos recentes, de apostar na colecção 11x17 de livros de bolso, lançando dezenas de títulos de elevada qualidade, ideais para quem quer levar um livrinho leve pra ler no avião, na praia, ou durante o debate do Orçamento do Estado.
E assim, por menos de 7 Euros, marquei encontro com o senhor Holmes.
O Vale do Terror é um livro bastante interessante, e até curioso, pois trata-se de uma história de Sherlock Holmes… praticamente sem Sherlock Holmes! Como é habitual na maioria das suas histórias, a narração é feito pelo seu estimado colega, o Doutor Watson, sendo que Holmes aparece apenas duas ou três vezes “em cena”, mas – obviamente – precisamente para desvendar o mistério, recorrendo ao seu método único.
O interesse deste livro vai muito para além do crime que o detective e os seus companheiros solucionam, pois na verdade O Vale do Terror são duas histórias numa. Elementar, meus caros leitores de blogue! A história começa em redor de um crime violento, que rapidamente é resolvido por Sherlock em muito poucas páginas, embora de forma deveras entusiasmante, recuando a história várias décadas logo de seguida, para contar o que se passou previamente e que nos levou até ao crime no presente.  É uma fórmula extraordinariamente bem concebida, e se nos lembrarmos que o livro foi publicado em 1915 (quase há cem anos!) presumo que tenha sido até certo ponto inovador para a altura.
A transição entre as duas histórias é, ela própria, feita de uma forma excepcional, com um diálogo directo entre o Dr. Watson e o caro leitor. Subitamente, somos transportados para um ambiente de “Velho Oeste” americano, com xerifes, comboios e muitas pistolas. E é aqui que a história verdadeiramente cresce. Se a primeira parte é “apenas” a investigação de um misterioso crime numa mansão britânica, a segunda parte é uma cascata vigorosa de acção que decorre no ambiente das sociedades secretas, cheias de membros obscuros, simbologia misteriosa e todos os ingredientes que de um momento para o outro nos dizem “prepara-te para o embate”. Não conheço o suficiente sobre a maçonaria, mas toda a descrição que o autor faz dos “Homens Livres” que pertencem à “Loja” não esconde minimamente a ligação que pretende fazer com este mundo à parte. E a exploração do tema é feita de forma muito inesperada, mostrando uma veia extremamente violenta e que recorrentemente usa a desculpa de “estamos apenas a defender-nos” para justificar todo o tipo de atrocidades.
É um livro extremamente fácil, e agradável, de ler, cheio de personagens interessantes e muito bem caracterizadas. Enquanto lemos a primeira parte somos confrontados com vários episódios em que ficamos com aquele ar “hum, há aqui qualquer coisa que não bate certo”, e depois vamos desmontando o puzzle à medida que mergulhamos na segunda parte, e agarramos nas migalhas que o escritor nos deixou no início.
E nos bastidores há um outro elemento fortíssimo que marca a narrativa. Alguém que nunca surge na história, mas cuja presença paira como uma sombra à qual não se consegue escapar: o Professor Moriarty. O eterno nemesis de Sherlock. O génio do crime que tudo manipula à distância. Que forma fenomenal de conceber o “mito” da personagem, dando-lhe um fôlego invejável sem nunca aparecer ou intervir na acção. Delicioso!
Entretanto, descobri alguns pormenores engraçados em redor deste título, nomeadamente o facto de já ter sido alvo de várias adaptações à televisão, mas também ao cinema. Inclusive num filme mudo logo em 1916. O que não deixa de ser peculiar. É sequer possível conceber um “filme mudo” em redor de Sherlock Holmes? A personagem que mais vive à conta das palavras? Da sua investigação e do seu método de observação/dedução lógica? Dificilmente conseguiremos saber, dado que o filme está considerado “perdido” (link). Pode ser que tenhamos a sorte de aparecer uma cópia esquecida nalgum arquivo poeirento, como aconteceu recentemente com o primeiro filme de Orson Wells. Em alternativa, resta-nos esperar pela adaptação da nova série da BBC.

Uma coisa é certa: a história é muito interessante, e cheia de reviravoltas inteligentes que nos mantêm de olhos esbugalhados até à última página. E só mesmo para estragar a surpresa, posso dizer que desta vez não foi o mordomo! :)

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

A Gata Telma e os Telminhos (2)

Ora bem, ainda estão todos recordados da prodigiosa Gata Telma? Aquela rafeira vagabunda tresmalhada sem-vergonha que me aparece em casa a pedir comida?
 
E recordam-se de há pouco mais de 2 meses ter falado dos 2 Telminhos que ela – estupor parasita – trouxe atrás para me cravar ainda mais comida?
Pois bem, eu já andava há uns tempos a notar que a barrigona da nossa amiga vadia estava cada vez maior. Ora, não sendo ela accionista da EDP nem da GALP, era óbvio que só podia haver mais uma razão para a engorda.
Ei-la!
 
Sim, sim, fresquinho(a) e acabadinho(a) de apanhar este fim-de-semana. Nem pensem em baptizá-lo(a) de Merkel, senão sou eu próprio quem vos esgatanha o focinho!
E se pensam que “é só mais um, ou dois”… façam lá bem as contas!
 
Cinco, contei eu na única altura em que apanhei a safardana fora do “ninho”. Um clone da nossa amiga (na foto acima), um tigre amarelo, um branco com pintas castanhas, um clone do “Telminho Preto-e-Branco”, e outro todo preto. Este estupor é pior que os Ucranianos! Traz logo meia-dúzia atrás! E continua sem me pagar renda!

Posto isto, estão abertas as submissões de propostas de nomes para este bando de “okupas” que me decidiu invadir a propriedade. Será que posso processar o Estado por isto? Lançar uma petição na Net, a reclamar… qualquer coisa, assim tipo um RSI felino, com direito a abono por serem uma família numerosa? Humm, ainda acabo a ganhar uns trocos à conta disto…

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

A Gaiola Dourada


Hum? Então o gajo que só vê filmes de robots e dragões vem aqui falar de um drama/comédia luso-francês? O que é que há de errado com este filme? Ora, respondendo à letra: rien de rien!
Declaração de interesses #1: Eu não gosto de cinema Português. Já tentei ver dezenas de filmes, mas raros foram aqueles em que consegui passar dos 20 minutos. Acho-os parados, cinzentos, amorfos, desprovidos que qualquer interesse, com actores muito fracos, e uma produção paupérrima. Haverá, porventura, excepções, mas estou em crer que serão somente aquelas que confirmam a regra.
Declaração de interesses #2: Eu não gosto da Rita Blanco. Bem sei que é uma das artistas mais elogiadas em Portugal, mas sempre a vi no papel de sonsinha-enjoada que não passa daquilo.
Feitas estas duas declarações, o filme é soberbo, e a Rita Blanco é magistral. Que tal para começo de conversa?
Quando o filme foi anunciado, ignorei-o por completo. Uma comédia Portuguesa sobre emigrantes em França…? Ah, oui, oui, guardem-me o lugar na sala de cinema que – como cantam os Deolinda – vão sem mim, que eu vou lá ter! Só lhe comecei a dar atenção quando nas notícias começou a “empolar”. 450.000 espectadores. E, por mero acaso, vejo o trailer na televisão. E penso: será que…?
Pois bem, lá acabo por resolver ir ao cinema. Na primeira meia-hora não podia ter uma reacção mais negativa! Ah… então basicamente é um filme onde a cada 2 minutos as pessoas se riem porque alguém diz merda ou caralho… Começo a perceber o porquê de tanto sucesso. Mas aos poucos o filme vai-se desenrolando, e a atenção do espectador começa a ficar sequestrada. Na realidade, isto é um drama de uma intensidade tremenda disfarçado de comédia. Tem momentos hilariantes, sem dúvida (quando os gémeos decidem falar Português!), mas é o pano de fundo que lentamente vai surgindo. O argumento é de uma sagacidade luminosa. Simples, mas de uma consistência bela, e tão Humana que arrepia. Ruben Alves, 33 anos, luso-descendente, primeira longa-metragem da sua carreira, deixou-me rendido. Se é certo que ter toda a cavalaria pesada da produção Francesa atrás de si é meio-caminho andado, não é menos certo que a impressão digital do autor é o que sobressai nesta obra de excelência. A atenção ao detalhe é uma delícia. As personagens são ímpares. A porteira Portuguesa e o trolha que é fã do Benfica. O bacalhau. A fotografia dos três pastorinhos (quase imperceptível). A inteligência de conseguir satirizar os usos e costumes tão Portugueses, que fazem deste um dos povos mais genuínos e Humanos do mundo. É tudo comovente. Como é que por detrás dos merda! e dos foda-se! se consegue cinzelar um hino ao ser Português, tão tocante, tão arrepiante, tão sentido. Engana-se redondamente quem julga que isto é uma comédia. Isto, ó gente da minha terra, é um trabalho de amor à matriz Portuguesa. É o carinho profundo de quem sabe rir de si próprio, da sua inocência, dos seus infindáveis defeitos, somente superados pela sua inesgotável paixão, por um coração que deu novos mundos ao mundo. É a ternura profunda de um rapaz, que não tendo nascido em Portugal, trabalhou numa obra-prima para dedicar aos seus pais, e às suas raízes.
Tantas vezes me tenho lamentado aqui no blogue pela pasmaceira em que o cinema se afundou. Estava bem longe de pensar que seria um filme semi-Português a fazer-me renascer a devoção ao cinema. Muita gente estúpida vai achar que gosta do filme porque “é uma cena a gozar com os parolos dos emigrantes”, mas o mundo está cheio de gente estúpida, e nada há que possamos fazer, a não ser ignorá-los. Esta é uma das obras que mais reflecte sobre o que é este povo, numa introspecção fortíssima que começa por levar a coisa na brincadeira, e aos poucos vai relevando as várias camadas da cebola, prendendo o inocente espectador ao ecrã, apaixonando-se loucamente pelas personagens, querendo fazer parte desta família – sem se perceber que, na realidade, faz mais parte dela do que julga. Rita Blanco e Joaquim de Almeida têm ambos prestações magníficas, num diálogo perfeito que quase salta para fora da tela.
A música está nas mãos de Rodrigo Leão, um daqueles prodígios que a música Portuguesa possui. É difícil “sentir” a música ao longo do filme, pois há muitas músicas tradicionais Portuguesas que passam, intercalando com as peças originais do compositor. É preciso ver o filme uma segunda vez para se conseguir apurar. Mas enfim, é Rodrigo Leão, e portanto não deve oferecer muitas dúvidas quanto à qualidade. Não nos esqueçamos que este senhor, ao lado do “Adamastor” de nome Pedro Ayres de Magalhães, era um dos motores dos Madredeus.
Guarda-se o melhor para o fim, não é verdade? Falemos então da sequência que tem um fado cantado numa casa de fados. É o clímax do filme. É o momento em que cedemos, colapsamos, esquecemos a comédia, esquecemos o cinema, esquecemos tudo. É um dos fados mais poderosos do repertório de Portugal. Filmado com a garra que só deveria existir naqueles realizadores já com longa carreira feita, e discursos de agradecimento nos Óscares. Foram buscar a Catarina Wallenstein para interpretar a fadista. Já dela sentia que era uma das grandes actrizes que temos no país, e não me espantei quando toda a cena se desenrolou com uma perfeição irrepreensível. Mas agora acabo de ver o José Alberto Carvalho a entrevistar o Ruben Alves, onde este revela que a cena é gravada ao vivo, com a Catarina a “cantar de verdade”. Com licença. Permitam que me retire, pois creio que falhei uns quantos batimentos cardíacos… Estou de rastos.
Depois de hora e meia de êxtase, mergulhado neste tão tresloucado e imbecil orgulho estúpido de ser Português, que pouca gente no mundo consegue explicar, com a voz trémula e o rosto lavado em lágrimas, só me ocorre dedicar a Ruben Alves esta tão Portuguesa palavra: obrigado.

Pelo Melhor:
Catarina Wallenstein. São 4 minutos que nem Scorsese ou Copolla me conseguiram alguma vez dar.

Pelo Pior:

Rien de rien.


terça-feira, 3 de setembro de 2013

“Um Dia de Cólera”, de Arturo Pérez-Reverte


- Fogo! – ordena Daoiz, e todos se afastam.
É Goméz Mosquera quem aplica o bota-fogo fumegante. Com uma sacudidela violenta de retrocesso, o canhão envia a sua descarga de pedras de fuzil transformadas em metralha aos franceses agrupados a cinquenta passos. Aliviado, Daoiz vê como o grupo inimigo se desfaz: alguns soldados caem e outros correm, libertando aquele local da rua. Da cerca e varandas próximas, os atiradores aplaudem os artilheiros. Ramona García Sanchéz, depois de limpar o nariz com as costas da mão, lança, com muito garbo, um piropo ao capitão.
- Vivam os senhores oficiais bonitos, mesmo que sejam baixinhos. E viva a mãe que os pariu.

Eu odeio Espanhóis. E odeio particularmente um Espanhol: Arturo Pérez-Reverte. A razão é simples: nasceu no lado errado da fronteira. Tivesse nascido em Portugal e seria o melhor escritor do mundo. Assim, é apenas um Espanhol... que figura entre os meus 3 escritores de eleição. Ah, mas como odeio este gajo! Ao ponto de já ter lido 4 livros dele (antes deste), “A Tábua de Flandres”, “O Cemitério dos Barcos Sem Nome”, “O Clube Dumas”, “O Mestre de Esgrima”, e colocar os dois primeiros na minha lista de 50 livros imprescindíveis.
Falemos então deste quinto livro na minha contabilidade pessoal. Um Dia de Cólera é o livro mais difícil de abordar de Pérez-Reverte. Não se trata de ficção, não se trata de romance, não se trata de um documentário. Trata-se de literatura ao mais alto nível, o que é habitual em Pérez-Reverte. Temos que começar pela disciplina mais fascinante de todas: a História.
Nem que seja vagamente, toda a gente tem noção das campanhas de Napoleão e do seu exército Francês no início do século XIX. A acção do livro decorre em Madrid, uma das várias cidades Europeias ocupadas pelos Franceses, e cujo autoritarismo tem vindo a fazer crescer o sentimento de revolta entre a população. No dia 2 de Maio de 1808 “a tampa saltou”, e os Madrilenos revoltaram-se contra os invasores.
O livro não é um mero ensaio de ficção histórica. Não acompanha o dia-a-dia de uma ou outra personagem. Em vez disso, Pérez-Reverte fez um trabalho colossal para conseguir ficcionar todos os relatos históricos que dão conta do sucedido nesse dia de cólera. (Esta é a parte antipática do livro. Onde é que já se viu uma obra onde os Espanhóis são os bons da fita??!?) É difícil acompanhar o livro, pois ele alterna entre o relato pessoal de algumas personagens-chave, e o relato histórico do que aconteceu com centenas de intervenientes. E são mesmo centenas, e o escritor faz questão de os referir a todos pelo nome, profissão, origem, e sempre que possível relatar como morreram, ou como viveram. É um trabalho histórico notável. Uma homenagem extraordinária aos homens e mulheres do povo que se sublevaram contra os agressores. E esta história trata mesmo de homens e mulheres do povo, pois foram eles – como quase sempre acontece – que ousaram dizer não! Os nobres, ricos, e mesmo as cúpulas da Igreja, sempre conviveram bem com invasores ao longo da História, desde que nada lhes faltasse. O que interessa o sofrimento dos indigentes?
É curioso ver o quão meticuloso Pérez-Reverte é, em particular, com as mulheres que participaram na rebelião. E se são muitas! Esta não é uma história de soldados de dois exércitos aos tiros entre si. Antes, é a história dos sapateiros, serralheiros, carpinteiros e comerciantes que se lançaram em nome da pátria contra o Golias que os espezinhava, e das mulheres que arriscaram – e perderam! – as vidas ao lado dos seus maridos, disparando contra os Franceses, curando dos feridos, ou simplesmente ajudando a esconder os refugiados. É um relato frenético que dura 24 horas, no meio de tiros de fuzis, cartuchos mordidos, baionetas ensanguentadas, e salvas de canhão. Poucos filmes conseguem dar uma sensação tão real do que terá acontecido neste fatídico dia. Pérez-Reverte é genial.
No centro da narrativa estão os dois capitães “rebeldes”, Pedro Velarde e Luís Daoiz. Não comandaram exércitos, não tiveram reforços, não prepararam uma ofensiva. Limitaram-se a estar do lado certo da História: o lado de quem luta pelo que é seu. (Esperem lá… eu estou mesmo a falar de Espanhóis?!?! Que se passa comigo?) Ao lado de Velarde e Daoiz estão centenas de populares desorientados, revoltados, alguns que trazem as suas próprias armas, e que querem correr com os gabachos. É o caso do serralheiro Blas Molina, figura que ficará para a História, ao lado de incontáveis anónimos que o Tempo se encarregou de esquecer.
A vividez da escrita é avassaladora. Pérez-Reverte É avassalador a escrever. Percorremos as ruas de Madrid, os seus jardins, a Puerta del Sol, e estamos na ombreira de cada porta a ver as movimentações de ambos os lados. Vemos as mulheres à varanda, que atiram vasos à cabeça dos Franceses quando estes passam. Vemos a freira na janela do convento a incitar à rebelião. Vimos os rapazes de 12 anos a morrerem com uma salva de metralha. E vimos o sangue coagulado que ensopa as ruas da capital. Não é um livro fácil de ler, mas é um guião magistral para um documentário.
Um pormenor: o livro vem acompanhado de um mapa de Madrid da altura. Portanto, torna a experiência de acompanhar o que se passa ao longo da cidade ainda mais envolvente.
Os dois capítulos finais são um murro no estômago, à medida que vemos os insurrectos a tombar, e as tropas de Napoleão a reassumir o controlo das ruas. Lamento pelo “spoiler”, mas… estamos a falar de factos Históricos, portanto não é propriamente o segredo mais bem guardado do mundo. Testemunhar o silenciar dos tiros, contabilizar os mortos, e acompanhar a repressão violenta dos Franceses deixa-nos deprimidos. No fim de um livro queremos sempre que os bons ganhem. Mesmo que sejam Espanhóis. E sentir a “aura negra” a baixar à medida que o livro caminha para o fim… é um desalento.
Eu quero ter um escritor assim a falar da História do meu país. Pérez-Reverte é tão grande que tem, inclusive, a sagacidade de assumir uma postura imparcial. Não é um relato a preto-e-branco de estes são os bons, e aqueles são os maus. De ambos os lados há heróis e vilões. De ambos os lados há homens de coragem, e cobardes cujo nome não merece ter entrado para a História. Este livro é a dádiva de Pérez-Reverte ao seu país. Os Espanhóis deviam beijar o chão que este homem pisa. Que tributo magnífico aos pobres chisperos e manolos que se ergueram contra os opressores.

A 2 de Maio de 1808 os referidos heróis Daoiz e Velarde adquiriram a glória que imortalizará os seus nomes e que deu tanta honra às suas famílias e a toda a nação.

Há inúmeros episódios memoráveis no livro, como o da mulher que morre com uma bala no pescoço quando leva um garrafão de vinho aos soldados. Como refere uma crítica do El País, citada na lombada: O leitor fica com a sensação de estar envolvido na confusão de fumo, pólvora e espanto que foi o 2 de Maio. Até parece prudente baixarmo-nos.
Como odeio este Espanhol…

Um Dia de Cólera, Arturo Pérez-Reverte, ASA, 2008

Página do autor: http://www.perezreverte.com/