terça-feira, 29 de outubro de 2013

«de tudo o que fui e de tudo o que me espera»

Dissera-o, rindo-se atrás do vidro de um copo de vinho, em Veneza, na última noite de fim de ano em que estiveram juntos. Ela tinha insistido em regressar ali, onde passara vários fins de ano da sua infância, para ver a exposição dos surrealistas no palácio Grassi. Quero que me leves ao melhor hotel dessa cidade fantasma, pediu, e que deambules comigo de noite pelas suas ruas desertas, porque só nesses dias é possível vê-las assim: está tanto frio que os turistas de pé descalço morrem congelados nos bancos, toda a gente se refugia em hotéis e pensões, nas ruas só há gôndolas baloiçando silenciosamente nos canais, a rua dos Assassinos parece mais estreita e sombria do que nunca e as quatro figuras talhadas em pedra da Piazzetta aproximam-se mais umas das outras como se tivessem um segredo que quem as contempla desconhece. Quando era uma jovenzinha, fugia para passear com cachecol e gorro de lã, ouvindo o eco dos meus passos, enquanto os gatos me olhavam dos portais escuros. Há muito tempo que não vou a essa cidade e agora desejo fazê-lo de novo. Contigo, Faulques. Quero que me ajudes a procurar a sombra dessa menina, e depois, de volta ao hotel, ma cosas de novo aos calcanhares com agulha e linha, silencioso, paciente, enquanto fazes amor comigo com a janela aberta e o frio da lagoa eriçando-te as costas, com as minhas unhas cravadas nelas, até sangrares e eu me esquecer de ti, de Veneza, de tudo o que fui e de tudo o que me espera.

Há uma pessoa que escreve assim.

(odeio este Espanhol…)


segunda-feira, 28 de outubro de 2013

“Três Sombras”, de Cyril Pedrosa

Não é muito hábito falar por aqui de banda desenhada, apesar de ser algo de que gosto muito desde novo. Essencialmente a escola franco-belga e os comics americanos. Não deixa de ser curioso que a única BD que nunca me apelou verdadeiramente é precisamente a japonesa, e os seus manga que tanto sucesso fazem, e que de certa maneira acabaram por “infectar” todo o estilo de BD a nível mundial nas décadas mais recentes.
Este artigo esteve quase para o não ser. Explico: quando acabei o álbum, pensei: gostei disto, podia escrever sobre ele lá no blogue. Mas, pouco depois: hum, não sei se alguém se interessa pelo tema. Até que por fim, quem me emprestou o livro – o poderoso Sr. Fusão (que também responde pelo nome de código “Muafa”) – me disse: epá, eu até curto ler as tuas cenas, portanto fala lá sobre o livro no blogue!
Ok, vamos a isso!

“Três Sombras” é um livro grande, em particular para quem está habituado ao formato convencional das 30-40 páginas dos álbuns europeus. Mas tem razão para o ser, pois o autor quis contar – sem pressas – a extraordinário odisseia de um pai e de um filho. Comecemos, então, como todas estas nossas histórias começam: Era uma vez um casal que vivia numa casa de campo com Joaquim, o pequeno filho de ambos que costumava acompanhar o pai no dia-a-dia, vivendo uma genuína felicidade nas mil e uma aventuras com que se deparava na floresta. Certo dia, surgem três cavaleiros à distância, deixando a família em alerta. Quem serão? Nunca se aproximam da casa, e as suas longas sombras projectam-se a partir do horizonte. O pai de Joaquim tenta correr na direcção dos cavaleiros, mas rapidamente percebe que nunca os consegue alcançar. É então que começam a perceber que “algo estranho se passa”, e que o pequeno Joaquim pode correr perigo… A Mãe decide então ir até à cidade, falar com uma velha bruxa (?) para tentar proteger o filho destas estranhas criaturas. Com a certeza de que as sombras estão atrás de Joaquim, o pai não vê outra alternativa a não ser pegar no filho e tentar fugir para longe. É essa fuga que os vai levar numa extraordinária odisseia, que começa a bordo de um navio cheio de personagens magníficas, que muitas vezes comunicam apenas com um olhar, e que nos compelem a devorar cada traço em cada vinheta.

Não vou contar o resto da história, pois é aqui (ao embarcarem no navio) que ela verdadeiramente começa, e não quero estragar a surpresa a quem vai ler o livro. Bastará dizer que vale a pena. Centremos, então a atenção no traço (ou, usando uma linguagem mais técnica, na bonecada). Eu sou, sempre fui, e sempre serei grande fã de banda desenhada a preto-e-branco. Para mim, a “Savage Sword of Conan” desenhada por John Buscema nos anos 70 continua a ser a obra-prima da história da BD. Não é muito fácil definir o estilo de Cyril Pedrosa. Creio que uma descrição adequada será classificá-lo como uma espécie de esboço a lápis, que num primeiro olhar parece ser uma coisa muito simplista e demasiado “cartoonesca”, mas que aos poucos vai revelando uma complexidade na riqueza dos pormenores que compõem cada imagem. O trabalho é muito gráfico, composto por perspectivas forçadas e muito movimento, como é o caso do fumo que parece feito de argolas de algodão ondulantes, e enriquecido pelas sombras (duh!, não se esperaria outra coisa dado o título do livro) que ganham particular dimensão num maravilhoso preto-e-branco que alterna entre pranchas quase brancas, com meros elementos para dar continuidade à história, e imagens negras, carregadas de expressividade ameaçadora e que sabem reclamar na perfeição a atenção dos nossos olhos. São, certamente, necessários muitos anos de trabalho para chegar a um traço tão simples, tão despojado de acessórios supérfluos.
Quem ler isto até fica convencido que eu percebo alguma coisa do que estou a dizer, hehehe…

Veredicto: um trabalho muito bom, quer ao nível da história, quer ao nível visual, tratado de uma forma que explora os sentimentos familiares num misto de magia e realismo, bastante original e que nos transporta para uma aventura cativante, numa perspectiva diferente, e muito apelativa.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Gravidade


Respiremos fundo! Ainda há esperança para o cinema. Podem cancelar o atentado terrorista contra Hollywood. Mas só desta vez! E graças a um Mexicano.
Que interesse pode ter um filme sobre astronautas à deriva no espaço? Muito pouco, a menos que esteja nas mãos de um grande realizador. É o caso.
Gravidade pôs-me as orelhas em pé assim que vi o primeiro trailer. Parecia intenso. Mas deixava uma pergunta no ar: cinco minutos de catástrofe espacial conseguem ser projectados de forma interessante para um filme de 90 minutos? Depois houve outra coisa a chamar-me a atenção. Um nome: Alfonso Cuáron. O realizador do fabuloso “Os Filhos do Homem”. E depois houve, não um, mas dois nomes a fazer-me torcer o nariz: George Clooney e Sandra Bullock.
O cavalheiro é um bom actor, mas é daqueles que em 90% dos filmes se limita a fazer… dele próprio. Há muitos bons actores que infelizmente decidem enveredar por este caminho. George Clooney é muito bom a fazer de George Clooney. Mesmo no espaço, durante o Apocalipse, against impossible odds, ele mantém o ar cool, a voz pausada, e o ar imperturbável de Bond, James Bond. E, como esperado, é isso que se limita a fazer no filme. Não é mau. É simplesmente mais do mesmo.
Já no caso da dama, não me lembro de qualquer filme em que a tenha visto e que fosse algo mais do que meramente “meh”. Em boa verdade, devo dizer que não vi The Blind Side, filme onde Bullock ganhou um Oscar. Em suma, associo-a sempre a uma espécie de “adolescente tardia que passa metade do tempo em comédias rasca aos gritinhos”. Nada disso se passa em Gravidade, onde ela tem uma prestação excelente, embora eu não alinhe pelo coro de deslumbrados que já anda por aí a pulular na Net a berrar para lhe darem o segundo Oscar.
Mas esqueçamos os actores, já que o verdadeiro protagonista do filme é o realizador. Cuáron desarma-nos com uma obra excepcional do ponto de vista cinematográfico. Este filme é um manual de como fazer cinema, associado à constatação do quão avançada está a tecnologia ao serviço da Sétima Arte nos dias que correm. Tudo em Gravidade é o sonho de qualquer cinéfilo. O suspense no filme é sufocante, e é todo conseguido graças à montagem perfeita de cenas realizadas com uma serenidade desconcertante. 99,9% dos realizadores faria uma série de sequências caóticas, com tudo a inundar o ecrã de flashes, e gente aos gritos, e explosões à Michael Bay. Cuáron limita-se a fazer planos de 20 minutos ininterruptos em que a câmara acompanha discretamente a acção, aproximando-se e afastando-se com uma placidez memorável. Isto é um ensaio de cinema. Querem aprender a realizar na perfeição? Vejam este filme. A própria realização transporta o peso do título do filme. É magnífico. Há cenas de uma beleza difícil de expressar por palavras. Já todos sabemos que nada existe no Universo mais belo do que a Terra vista do Espaço. Cuáron limita-se a recordar-nos disso. Há longos planos onde apenas se filma o planeta, acompanhado de um silêncio prolongado. E é isto que continua a justificar a ida às salas de cinema. Uma aurora boreal vista do Espaço, em tamanho gigante, é de suster a respiração.
Querem que vá já à música, ou deixo-a para o fim? Ok, de acordo, guardemos o melhor para o fim, e centremos a atenção então na história. O filme não precise de história. Quase não tem argumento. Dispensa-o. Tem Cuáron, é tudo o que é preciso. Mesmo assim, nos poucos relances em que somos recordados de que existe uma história a decorrer, há ainda tempo para algumas (breves) reflexões sobre o espírito Humano e a sua força anímica. São toques leves. Meras pinceladas. Não queremos estragar a obra-prima com demasiado melodrama ou lamechice. Tomem lá um cheirinho, e voltemos ao orgasmo visual.
Destaco, em particular, as cenas filmadas a partir do interior do capacete da astronauta. São maravilhosas, de um realismo que quase nos dá vontade de esticar o braço para vermos a nossa mão através da viseira do capacete.
O filme, como é óbvio, não é isento dos exageros típicos de Hollywood, mas que se pode fazer? São as regras do jogo. Um filme destes sofre pelo facto de existir num tempo onde os imbecis gostam é de ver “Twilights” e “Transformers”.
E já agora, para os inúmeros senhores e senhoras que andam ocupados a criticar o filme pela quantidade de “erros científicos” que tem, permitam que cordialmente vos mande à merda. Atentamente, THE PSY.
Ora, vamos à música que se faz tarde. Steven Price. Quem é este tipo? Não faço ideia. Este ano tem sido uma maravilha para mim. A quantidade de compositores desconhecidos que estão a dar cartas, e de qualidade, era algo que eu não antevia. É certo que se está a desenvolver um “estilo próprio” no cinema americano, onde todas as músicas parecem vir do mesmo sítio (defeitos da massificação do electro), mas há casos em que tal merece uma atenção especial. A banda sonora de Price é o complemento perfeito à realização de Cuáron. Enaltece inebriantemente aquelas cenas de suspense que nos deixam a tremer de antecipação. Com uma beleza rara, uma diversidade assinalável, e sem nunca, nunca, nunca, cair na tentação de avançar para uma peça cheia de exageros para “fazer muito barulho porque aimeudeusvamostodosmorrer”. Nunca cede ao histrionismo básico que tão popular se tornou no cinema contemporâneo. Esta é uma das bandas sonoras que maior identificação projecta sobre o filme. Aqui, mais do que em qualquer outra obra, o filme é indissociável da música. Intimista, boa parte dos temas só podem ser entendidos vendo o filme, ou ouvindo-os de olhos bem fechados.
Chegados aqui, resta-me sublinhar a inspiração que este filme é. Geralmente necessitamos de um grande argumento, um grande realizador, e grandes actores para termos um grande filme. Alfonso Cuáron altera as regras do jogo. Mostra que é possível ter uma história muito insípida, sem grandes diálogos, e sem grandes desempenhos, e mesmo assim sentir a magia do cinema. Meus amigos, se há pessoa que costuma mandar vir pela falta de bons argumentos no cinema sou eu. No entanto, se querem ter a história como vector principal, então sugiro que peguem num livro e saciem a vossa sede. É reconfortante ver que ainda há realizadores capazes de arriscar algo novo. Visual e tecnicamente, Gravidade é um dos filmes mais perfeito de todos os tempos. O resto… são detritos espaciais.
Corram a uma sala de cinema. Vejam o filme. Ouçam a música. Esqueçam tudo o resto.

Pelo Melhor
A sinergia entre realizador e compositor, que resulta numa das obras audiovisuais mais intensas desde que a palavra foi inventada. Se têm dúvidas, fica este trailer que é na realidade um excerto de um minuto do filme.

 Pelo Pior

Os símios mentecaptos e privados de oxigénio que me obrigaram a ver o filme em 3D. Existe um lugar especial no Inferno para gente desta. Gente que gosta de cinema 3D está na mesma escala evolutiva do que gente que escreve com o acordo ortográfico: merecem levar com um satélite Russo nos cornos! E sim, eu sei que vocês estão a ler isto, e portanto caganeira de babuíno para vocês! >:(

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

“O Vale do Terror”, de Arthur Conan Doyle


- É uma mensagem cifrada que o Doutor Watson e eu tivemos ensejo de resolver. Mas porquê… o que há com esses nomes?
O inspector olhou alternadamente para nós dois com ar atónito.
- Apenas isto – disse ele. – O senhor Douglas, da Mansão Birlstone, foi assassinado hoje de manhã, em circunstâncias espantosas.

Sherlock Holmes. Poucas personagens da história da ficção dispensam tão facilmente qualquer tipo de apresentação. O detective do número 221B de Baker Street é imediatamente visualizado mesmo por quem nunca tenha lido uma única página das suas aventuras.
Familiarizei-me com o Sr. Holmes ainda bastante novo, graças a uma daquelas “colecções juvenis”. Depois disso, inevitavelmente, a televisão e o cinema ajudaram a que o senhor do cachimbo nunca saísse inteiramente de moda. Ora, como referi recentemente noutro post, Holmes está novamente em alta, e à conta disso a nostalgia tratou de me seduzir para o regresso à obra escrita de Sir Arthur Conan Doyle.
A Bertrand teve a feliz e muy nobre ideia, nos anos recentes, de apostar na colecção 11x17 de livros de bolso, lançando dezenas de títulos de elevada qualidade, ideais para quem quer levar um livrinho leve pra ler no avião, na praia, ou durante o debate do Orçamento do Estado.
E assim, por menos de 7 Euros, marquei encontro com o senhor Holmes.
O Vale do Terror é um livro bastante interessante, e até curioso, pois trata-se de uma história de Sherlock Holmes… praticamente sem Sherlock Holmes! Como é habitual na maioria das suas histórias, a narração é feito pelo seu estimado colega, o Doutor Watson, sendo que Holmes aparece apenas duas ou três vezes “em cena”, mas – obviamente – precisamente para desvendar o mistério, recorrendo ao seu método único.
O interesse deste livro vai muito para além do crime que o detective e os seus companheiros solucionam, pois na verdade O Vale do Terror são duas histórias numa. Elementar, meus caros leitores de blogue! A história começa em redor de um crime violento, que rapidamente é resolvido por Sherlock em muito poucas páginas, embora de forma deveras entusiasmante, recuando a história várias décadas logo de seguida, para contar o que se passou previamente e que nos levou até ao crime no presente.  É uma fórmula extraordinariamente bem concebida, e se nos lembrarmos que o livro foi publicado em 1915 (quase há cem anos!) presumo que tenha sido até certo ponto inovador para a altura.
A transição entre as duas histórias é, ela própria, feita de uma forma excepcional, com um diálogo directo entre o Dr. Watson e o caro leitor. Subitamente, somos transportados para um ambiente de “Velho Oeste” americano, com xerifes, comboios e muitas pistolas. E é aqui que a história verdadeiramente cresce. Se a primeira parte é “apenas” a investigação de um misterioso crime numa mansão britânica, a segunda parte é uma cascata vigorosa de acção que decorre no ambiente das sociedades secretas, cheias de membros obscuros, simbologia misteriosa e todos os ingredientes que de um momento para o outro nos dizem “prepara-te para o embate”. Não conheço o suficiente sobre a maçonaria, mas toda a descrição que o autor faz dos “Homens Livres” que pertencem à “Loja” não esconde minimamente a ligação que pretende fazer com este mundo à parte. E a exploração do tema é feita de forma muito inesperada, mostrando uma veia extremamente violenta e que recorrentemente usa a desculpa de “estamos apenas a defender-nos” para justificar todo o tipo de atrocidades.
É um livro extremamente fácil, e agradável, de ler, cheio de personagens interessantes e muito bem caracterizadas. Enquanto lemos a primeira parte somos confrontados com vários episódios em que ficamos com aquele ar “hum, há aqui qualquer coisa que não bate certo”, e depois vamos desmontando o puzzle à medida que mergulhamos na segunda parte, e agarramos nas migalhas que o escritor nos deixou no início.
E nos bastidores há um outro elemento fortíssimo que marca a narrativa. Alguém que nunca surge na história, mas cuja presença paira como uma sombra à qual não se consegue escapar: o Professor Moriarty. O eterno nemesis de Sherlock. O génio do crime que tudo manipula à distância. Que forma fenomenal de conceber o “mito” da personagem, dando-lhe um fôlego invejável sem nunca aparecer ou intervir na acção. Delicioso!
Entretanto, descobri alguns pormenores engraçados em redor deste título, nomeadamente o facto de já ter sido alvo de várias adaptações à televisão, mas também ao cinema. Inclusive num filme mudo logo em 1916. O que não deixa de ser peculiar. É sequer possível conceber um “filme mudo” em redor de Sherlock Holmes? A personagem que mais vive à conta das palavras? Da sua investigação e do seu método de observação/dedução lógica? Dificilmente conseguiremos saber, dado que o filme está considerado “perdido” (link). Pode ser que tenhamos a sorte de aparecer uma cópia esquecida nalgum arquivo poeirento, como aconteceu recentemente com o primeiro filme de Orson Wells. Em alternativa, resta-nos esperar pela adaptação da nova série da BBC.

Uma coisa é certa: a história é muito interessante, e cheia de reviravoltas inteligentes que nos mantêm de olhos esbugalhados até à última página. E só mesmo para estragar a surpresa, posso dizer que desta vez não foi o mordomo! :)