domingo, 29 de dezembro de 2013

O Hobbit: A Desolação de Smaug


Pouca gente sabe do calvário por que passou Peter Jackson nos finais dos anos 90 para conseguir fazer a trilogia O Senhor dos Anéis. Depois de muitas voltas e reviravoltas, associadas a direito de autor, dificuldades de financiamento, e perante a perspectiva de ter de cortar metade da história para condensar tudo num único filme, Jackson reuniu-se já quase em desespero com Robert Shaye, um dos administradores da New Line Cinema que lhe deu a inesperada resposta “se são três livros, não deveriam ser três filmes?”. Quinze anos passados, Jackson já vai no quinto filme da saga, havendo pelo menos um sexto a caminho.
Este segundo filme tem melhorias consideráveis em relação ao primeiro. Na altura, escrevi que O Hobbit: Uma Viagem Inesperada apesar de ser um filme extraordinário padecia do que me parecia ser alguma falta de edição, contendo demasiadas cenas alongadas que tornavam o filme algo monótono. Neste segundo capítulo, boa parte desse problema desaparece. O filme tem um ritmo muito bom, raramente tornando-se maçador. Os anões seguem a sua caminhada em direcção à montanha onde o dragão Smaug se encontra adormecido, acompanhados pelo assaltante Bilbo Baggins. Gandalf separa-se do grupo e vai investigar “as trevas” que sente estarem a despertar. E esta é uma das partes altas do filme, pois Jackson consegue fazer um trabalho fenomenal de antecipação dos eventos que ocorrem n’O Senhor dos Anéis. Esta mudança de tom também é benéfica para o filme, pois Bilbo passa para segundo plano, e a história centra-se muito mais nos anões. Se bem se lembram, eu não fiquei grande fã da prestação de Martin Freeman no primeiro filme. Devo dizer que o acho bem melhor desta vez, mas penso que isso se deve a duas coisas: por um lado precisamente pelo facto de assumir menos protagonismo, por outro lado pelo facto de este filme ter seguido um tom muito mais ligeiro e próximo da comédia.
Este segundo capítulo superou as minhas expectativas em praticamente todos os elementos. É um grandioso filme de aventuras. Ao contrário d’O Senhor dos Anéis, onde o tema é a luta épica do Bem contra o Mal, n’O Hobbit temos somente a extraordinária aventura de um grupo de anões que quer recuperar o seu lar ancestral. Ah, e já agora, o colossal tesouro que nele se encontra! Julgo que estamos perante um dos melhores filmes de aventura de que há memória. Nas alterações que fizeram à história original (o guião foi escrito por quatro pessoas – as três responsáveis pela primeira saga, às quais se juntou Guillermo del Toro), foram introduzidas as personagens de Legolas (para alimentar a nostalgia dos primeiros filmes) e de Tauriel (uma elfa ruiva toda giraça, mas que nem sequer existe em qualquer livro). As cenas passadas no lar dos elfos são o ponto alto do filme. Novamente, a equipa de Jackson demonstra que ninguém está ao seu nível em termos de criação de cenários deslumbrantes. O exotismo que marca a “sala” do trono de Thranduil é magnífico. Nada transparece melhor o sentimento de santuário natural do que aquilo. A quase ausência de luz dá-lhe um ar sobrenatural que arrepia. É muito, muito bom. Ao contrário do que eu esperava, a dupla de elfos até acrescenta bastante ao filme. São duas personagens que mudam por completo o tom da história, alternando muito bem com os anões. E depois há que sublinhar o papel de Lee Pace, que interpreta Thranduil. A maneira dele se mover, e a forma como olha para o “rei” anão são fabulosas. Muito melhor do que Hugo Weaving, que – apesar de ser um actor que eu venero – nunca me pareceu ter muito de élfico. Pelo contrário, Lee Pace assimilou na perfeição o que é um elfo Tolkienesco.
Outro dos pontos altos do filme é a passagem pela Cidade do Lago, onde finalmente temos direito a ter algum quality time numa cidade humana no meio desta aventura onde parece haver uma overdose de bicharada do folclore tradicional. E que ambiente excepcional! A fusão entre realismo medieval e fantasia é perfeita, e o cenário de neve e gelo confere-lhe um toque de poesia triste que é esplendoroso. Não sei se repararam, mas aos poucos estou a relatar tudo o que acontece no filme. Não me dei ao trabalho de colocar um “alerta de spoilers” porque… meus amigos, os livros têm décadas, se não os leram não foi certamente por falta de tempo.
Uma vez que não vou falar da banda sonora de Howard Shore, dado que repito o que escrevi há um ano: é um trabalho de preguiça, resta-me falar de Smaug, o simpático dragão que dá o título ao filme. Durante mais de um ano, a equipa de produção e os publicitários dos estúdios mantiveram grande segredo em redor de Smaug. Não o iam revelar, iam guardar surpresa, etc. Nunca percebi muito bem qual era a lógica, e agora que vi o filme… continuo sem perceber. É suposto ter alguma coisa de especial? É um dragão digital, à semelhança de todos os outros dragões digitais. Não é mais bonito nem mais feio, é igual. Tanto suspense para quê? Estava curioso quanto à voz de Smaug, uma vez que esta foi feita pelo deslumbrástico Bennedict Cumberbatch, mas, tal como aconteceu com Star Trek Into Darkness, o talento do homem foi subaproveitado. A voz está tão distorcida digitalmente que acaba por soar igual a tudo o resto (nem se nota grande diferença em relação a um Megatron, por exemplo). É pena, pois Cumberbatch já demonstrou que além de ser um génio da representação, sabe igualmente colocar a voz com um timbre que provoca calafrios, como aconteceu com Khan, em Star Trek. Imaginar a voz de Smaug igual à de Khan… Mãezinha!
E bom, está tudo dito. O filme é soberbo, ultrapassando o primeiro em todos os aspectos, ficando ao nível de qualquer um dos filmes da primeira trilogia, adensando o trabalho épico de mostrar toda a dimensão da cultura da Terra Média, e servindo como entretenimento de excelência. Como se tudo isto não bastasse, Ian McKellan entra, obviamente, no filme. Mas dele nem vale a pena falar, não é assim?

Pelo Melhor:
Saber fazer as coisas. É tão simples quanto isto. Todos os meses chegam ao cinema filmes de trampa, com orçamentos milionários, que não valem uma lata de sardinhas. Peter Jackson, até ver, tem mostrado o discernimento necessário para honrar uma obra de culto, adaptando-a à sua visão, à sua interpretação, mas mantendo o nível exigido por nós, geeks que veneram Tolkien.

Pelo Pior:

Novamente, a estupidez do botox digital. Por favor, parem de o usar! Querer retocar digitalmente as rugas e a pele dos actores só dá merda! Usem maquilhagem, ou então estejam quietos! Há alturas em que o Orlando Bloom (Legolas) parece um boneco da Disney. Já no primeiro filme isto tinha sido mau, e neste é ainda pior. Acho que a malta prefere a idiossincrasia de ter pessoas mais velhas numa altura cronológica onde deveriam estar mais novas, do que ter bonecos de plasticina saídos dos cinematics dos jogos de computador! Morte ao botox digital! Salvem as baleias! Morra o Dantas, morra, pim!


segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

200 Anno Wagner


Wilhelm Richard Wagner e Ludwig Van Beethoven não criaram a Música, mas levaram-na à perfeição. Beethoven é o maior criador musical da História. Wagner é o mais importante.
Quando Beethoven morreu tinha Wagner sete anos de vida. Ambos alemães, partilharam a vida com alguns dos maiores criadores musicais da Humanidade, mas é ao “jovem” Wagner que o Século XX deve a evolução musical que viu.
Wagner foi um visionário. Antecipou-se mais de um século a Hollywood. As suas óperas, cujos libretos foram escritos pelo próprio na sua grande maioria, criaram a extensão dramática/épica que somente os grandes filmes do cinema americano vieram muito mais tarde a alcançar. Há pouca coisa épica no cinema que Wagner não tenha feito na ópera. Até mesmo os “efeitos especiais” que tanta maravilha causaram nos cinéfilos foram trabalhados nas encenações dos seus trabalhos.
Esta exuberância foi possível graças, em grande parte, ao mecenato de Luís II da Baviera, rei que estoirou toda a fortuna da família a financiar as produções de Wagner, e a construir o fabuloso castelo Neuschwanstein (no qual eu votei para a lista das novas 7 Maravilhas do Mundo, em 2007), inspirado nas suas obras.
Em 2013 comemoraram-se 200 anos do nascimento do compositor. É triste que isto tenha merecido apenas uma breve notícia de rodapé, e que o ano musical tenha sido marcado por uma badalhoca a lamber martelos e a dançar nua em cima de uma bola. Duzentos anos antes nascia o homem que ganharia a imortalidade com a tetralogia “O Anel do Nibelungo”. Wagner pegou nos heróis da mitologia e do folclore nórdico e criou quatro óperas sem qualquer paralelo. Não há na História da Música outra realização a este nível. O Ouro do Reno, A Valquíria, Siegfried e O Crepúsculo dos Deuses só encontram obras de dimensão similar na literatura de Tolkien e outros génios.
Musicalmente, a tetralogia é de um arrojo assombroso. Não consigo imaginar o que deve ter sido para o público de então ver-se perante uma obra musical com uma pujança destas.
Têm dúvidas? Tentem então colocar-se numa época em que a sociedade estava habituada a ouvir e dançar ao som das valsas de Strauss, e de repente é confrontada com algo como isto:

Erich Leinsdorf "Prelude Act I" Die Walküre


Impressionante, até mesmo nos dias de hoje. Não colocarei aqui aquela que julgo ser a música mais perfeita jamais criada por um ser humano, a famosíssima Cavalgada das Valquírias, pois prefiro aproveitar esta oportunidade para partilhar outras músicas menos conhecidas.
O segredo de Wagner foi criar o leitmotiv, uma técnica de composição que associa um tema em particular a uma das personagens da ópera. Foi isso que os compositores do Século XX aprenderam a fazer, e foi com essa técnica que John Barry desenvolveu o tema de James Bond, e que John Williams (o homem responsável pela minha devoção à Música) desenvolveu a marcha inconfundível de Darth Vader, ou o tema de Indiana Jones. Wagner foi o pai de tudo isso.
O autor está muitas vezes conotado a questões bastante controversas. O facto de ser o compositor de eleição de Hitler levou a que ainda hoje a sua música seja mal recebida em Israel, onde inclusive o maestro Daniel Barenboim recebeu ameaças de morte por conduzir temas de Wagner. Foi um homem muito político, e controverso, mas pretendo falar apenas da sua obra.
A minha paixão pela música clássica começou precisamente com Wagner, há muito anos, quando na minha adolescência comprei, no Jumbo de Cascais, um CD por 800 ou 900 escudos (eu ainda sou desse tempo…) que tinha uma compilação das suas principais obras tocadas pela Royal Philharmonic Orchestra, conduzida por Vernon Handley. Não julguem que referir a orquestra e o nome do maestro é “overdose”. Conduzir Wagner não é para qualquer um. Está somente ao alcance dos grandiosos. Sempre que quiserem inspirar Wagner na sua plenitude, procurem por Erich Leinsdorf.
Para se perceber o porquê da importância de ter o maestro certo, e a orquestra certa:
Wagner Götterdämmerung - Siegfried's death and Funeral march Klaus Tennstedt London Philarmonic


É arrepiante, e comovente, ver Tennstedt a dirigir a Filarmónica de Londres. É porventura a música mais poderosa da História. Um dos prodígios da criação Humana. No final, Tennstedt está exausto. As lágrimas caem-lhe pelo rosto. O suor escorre-lhe da testa. O corpo treme. Isto é dirigir Wagner. Estamos no domínio dos deuses. Depois disto, nada resta…