terça-feira, 30 de setembro de 2014

O Assassino Inglês, de Daniel Silva


Uma imagem impressionante: um belo jovem em semiperfil, iluminado de forma sensual. Gabriel calculou que tivesse sido pintado enquanto Rafael vivia e trabalhava em Florença, provavelmente entre 1504 e 1508. O que acontecera ao velho tinha sido uma pena. Teria sido um prazer restaurar um quadro daqueles.
Regressou ao átrio de entrada, parou e olhou para baixo. Tinha deixado marcas de sangue ao longo do chão de mármore.

Eu não gosto de livros policiais ou de espionagem. Esta é, seguramente, a melhor frase possível de utilizar quando se pretende escrever um artigo de opinião sobre um livro de assassinos e espiões. Mas, alas, é mesmo assim. Exceptuando as obras de Agatha Christie ou de Conan Doyle, sempre que me falam em “histórias de crime e investigação” eu respondo com um bocejo.
Portanto, não sei bem o que estou a fazer ao escrever um artigo sobre um livro de Daniel Silva, mas alguma coisa daqui há-de sair.
A personagem central de “O Assassino Inglês” é Gabriel Allon, um talentoso restaurador de obras de arte que é contratado para recuperar – nada menos que – um Rafael (sim, o das Tartarugas Ninja). Acontece, meramente, que Gabriel é um operativo dos Serviços Secretos Israelitas, e quando chega a casa do dono do quadro encontra-o morto. A partir daqui, ladies and gentlemen, é apertar o cinto, porque o livro vai ser mesmo bom!
A história desenrola-se entre três países: Suíça, Itália, e o nosso Portugal. E logo aqui salta à vista a qualidade de escritor de Daniel Silva. Cada um dos países, e respectivos povos, é magistralmente ilustrado pelas palavras do autor. O ambiente que ele consegue criar em cada uma das zonas é delicioso. Os italianos são aqueles tipos estereotipadamente mafiosos, muito ligados às tradições, à família, à terra. Os portugueses são os santinhos simpáticos, altamente coscuvilheiros, sempre disponíveis para dar um sorriso aos estrangeiros (aqui captou-nos na perfeição). E depois temos os suíços. Eu não gostava de ser suíço e ler este livro…
Toda a acção do livro é desenvolvida em redor do roubo de objectos de arte pelos nazis, da colaboração silenciosa por parte da Suíça, e do papel que os bancos suíços tiveram nesta história que (verdadeiramente) nunca foi contada até ao fim. Alguns pormenores do livro dão a sensação que o autor o escreveu como uma espécie de “ajuste de contas com a História”. A forma como ele descreve o papel cínico do povo suíço e a sua ausência de ética em redor do tema chega a ser sufocante.
Daniel Silva é um escritor fabuloso, e provavelmente um dos melhores do género (embora, honestamente, eu não seja propriamente entendido na matéria para o poder afirmar). A escrita do homem é viciante, e a forma como acaba cada capítulo com um cliffhanger (qual é a palavra portuguesa para isto?) é aterrorizadora.
Não é possível escrever sobre um livro destes sem fazer spoilers (novamente, alguém que me arranje uma palavra em português…). A acção é extraordinariamente bem temporizada, raramente entrando em excessos, e nunca reduzindo o livro a uma banal história de “vamos lá falar novamente de nazis”. Nada disso. Todo o elenco é inteligentemente inserido na história, dando-lhe uma dimensão muito forte e apaixonante. Tirando o final demasiado “James Bondesco” para o meu gosto, a história é inteligente, surpreendentemente culta, chegando quase a parecer uma grande reportagem de um jornal de referência, onde polícias e criminosos são meros adornos. Evitando resvalar para o excesso literário, e intercalando a “alta espionagem” com os problemas pessoais de alguns dos intervenientes, poucas coisas sabem tanto a um murro no estômago no encontro com a realidade como quando lemos o segundo “Como é que foi Berna?”
Fico, não obstante, com a sensação que este livro foi escrito “para ser adaptado ao cinema”. Há capítulos inteiros que tresandam a tal. A boa escrita alternada com algumas sequências quase-estapafúrdias de “vamos lá começar a explodir com tudo” cheira mesmo a Silva a acenar com o guião a algum produtor interessado de Hollywood. Algumas das piores partes do livro são precisamente essas que parecem tiradas de um filme. Mas como são poucas não chegam para estragar a história.
Não creio que me vá tornar subitamente um fã de policiais/espionagem, mas também não creio que este seja o último livro de Daniel Silva que vou ler…

Para terminar, por norma gosto de complementar os meus artigos aqui no blogue com “informação de interesse” adicional. Voltando ao tema do livro, pesquisei um pouco mais por esse universo infinito que é a internet, e descobri que existem inúmeros movimentos que procuram precisamente ir ao encontro das muitas obras de arte roubadas pelos nazis. Para termos uma ideia da dimensão da espoliação bastará este excerto: Out of 600,000 works of art looted during the Nazi era from 1933 to 1945, an estimated 100,000 are still missing, misidentified or misappropriated.(Fonte: link)
Inclusive, há uma base de dados internacional onde é possível consultar os detalhes relativos às obras desaparecidas.
E, para termos ideia do quão certeiro (não-ficcionado) é o tema abordado no livro de Daniel Silva, O Assassino Inglês foi escrito em 2002; veja-se esta notícia do Der Spiegel publicada em 2007: link Der Spiegel.


segunda-feira, 15 de setembro de 2014

71 – Setenta e Um

EUFORIA! O PAULO BENTO FOI DEMITIDO! Não se assistia a tamanho êxtase em Portugal desde que o Mestre de Avis foi proclamado rei nas Cortes de Coimbra em 1385. O Facebook foi inundado por uma catadupa de comentários, e as próprias televisões nacionais dedicaram a notícia de abertura a tão marcante feito na História de Portugal. Algumas dedicaram mais de 10 minutos da abertura, trouxeram comentadores em directo para se pronunciarem sobre o acontecimento, e prontamente anunciaram emissões especiais nos canais por cabo, recheadas de painéis de comentadores, porque nestas ocasiões é sempre importante ter pessoas de referência que vão à televisão dizer umas coisas.
Como não podia deixar de ser, o ex-Seleccionador teve direito à sua indemnização. Ainda se falou em 3 milhões de Euros, mas parece que ele até foi um gajo porreiro e se ficou por 1/3 desse valor.
E é precisamente a partir deste ponto que surge este artigo, para os meus estimados amigos tresloucados com demasiado tempo livre, e boa vontade para ler as deambulações que por aqui volta e meia escrevo. Pensemos então num trabalhador acima da média estatística. Vamos dizer, para efeitos de exercício pedagógico, que ele ganha mensalmente 1.000 Euros. Até é um ordenado bastante acima da média do que se ganha em Portugal. Feitas as contas, ao final do ano, com direito a subsídio de férias e de Natal, o trabalhador em questão leva para casa 14.000 Euros. Na realidade é mentira, porque entre 10 a 20% deste valor desaparece em impostos. Mas, novamente, no espírito meramente académico deste exercício, vamos considerar – utopicamente – que todo o dinheiro ganho vai para a conta do trabalhador.
Mais. Vamos viciar as variáveis desta equação, e assumir que ele se mantém empregado toda a vida, e nunca leva cortes no salário, nem nada que se pareça. Ao fim de 10 anos amealhou 140.000 Euros. Se ponderarmos, em média, uma carreira contributiva de 45 anos de trabalho, o afortunado trabalhador, que passou a vida inteira a trabalhar das 9 às 18, conseguiu a proeza de receber 630.000 Euros pela sua vida inteira de trabalho. Estará velhote, perto dos 70 anos, mas trabalhou durante 45 anos para juntar 630.000 Euros. Para chegar ao valor da indemnização de despedimento do ex-Seleccionador teria que ter trabalhado mais de 71 anos (mais do que aqueles que tem de vida), e com todos os pressupostos fiscais e laborais “ligeiramente irrealistas” que defini para este exercício.
RESUMO DO EXERCÍCIO: o ex-Seleccionador assinou um papel no dia 11 de Setembro de 2014 e recebeu o equivalente a 71 anos de trabalho de um comum cidadão Português, que recebesse 1.000 Euros e não pagasse quaisquer impostos.
Portanto, chegamos ao número mágico que dá título a este artigo: 71. E é neste número que gostaria que ficassem a pensar se tiverem paciência de ler isto até ao fim. Acima de tudo, pensem neste número da próxima vez que pensarem em futebol, ou ficarem indignados porque “estes tipos não jogam nada”, ou provocarem os vossos amigos porque “hehehehe, a lagartada voltou a levar nas trombas”, ou porque “os lampiões perderam mais uma final qualquer”. Este é um número que convém ficar presente de todas as vezes que nos debruçarmos sobre o mundo do futebol. O mundo que é composto por tipos que recebem astronomicamente mais do que os valores que serviram de base a este nosso exerciciozinho para passarem o tempo a dar uns pontapés na bola. Sim, são uns pontapés bonitos. Eu também gosto de futebol (gostava?). E fazem-no em hotéis de cinco estrelas, com SPA, piscinas de luxo, comidinha da boa, com direito a prémios de jogo e mais um sem-fim de mordomias. Enquanto isso, “no mundo real”, uma legião de gente silenciosa estudou anos a fio, levanta-se às 6 ou 7 da manhã para ir trabalhar um dia inteiro, andou na faculdade a pagar para estudar, muitas vezes com sacrifício dos pais, e depois chega a casa e fica em frente à TV a ouvir os comentadores dos programas desportivos a dizer “pobrezinho do Zé, está em baixo de forma, não se pode exigir mais ao jogador…”
Já muitos amigos argumentaram comigo: “Ora, não sejas assim, porque aquilo exige muito trabalho e muito treino!”. OK, o que eu faço também exigiu muito trabalho e muito treino, e até hoje não vi os meus chefes a pagarem-me um hotel de cinco estrelas para o fazer. O meu local de trabalho não é propriamente um centro de estágios com SPA e salões para jogar snooker e Playstation. Vê-se nos rostos dos jogadores o “esforço” do seu árduo trabalho cada vez que há reportagens que filmam os treinos. Os seus rostos estão tristes e cabisbaixos, cansados, exauridos… Depois olho para os rostos das pessoas do mundo real, que às 8 da manhã estão a apanhar o metro em Entrecampos. São parecidos…
“Ora, não sejas assim, o futebol também é cultura!”. Humm… eu aqui invocaria alguma “objecção de consciência”, mas, novamente, para efeitos democráticos do presente exercício, vamos dizer que sim. Não tenho a certeza que alguma federação tenha pago ao José Luís Peixoto uma estadia num hotel de luxo enquanto ele escreveu o seu último livro. E também desconfio que o director do Museu Nacional de Arte Antiga não recebe um milhão de Euros por ano. E confesso que não estou a ver alguém a virar-se para o Saramago e dizer “olha, o teu último livro foi mau… portanto toma lá um milhão de Euros”.
“És mesmo do contra! Não vês que a Selecção é um orgulho nacional? Pensa no prestígio de Portugal!”. A sério? O “prestígio de Portugal” é ter uma dúzia de tipos aos pontapés à bola? Temos investigadores que ganham reconhecimento internacional pelas suas descobertas na área da ciência e cá dentro nem têm direito a nome, pois passam apenas numa curta entrevista já no encerramento dos jornais televisivos (Ângela Abreu, 2013, premiada pela NASA – sim, a NASA dos foguetões…). Temos escritores que lá fora vencem prémios de “melhor obra literária” (já alguém ouviu falar em Gonçalo M. Tavares?), e que o prestígio que merecem é ter direito a um programinha de TV numa estação bafienta às 2 da manhã. Temos uma diáspora de gente pelo mundo todo, que fez, faz, e fará, obras magníficas… e o “prestígio de Portugal” jaz em ganhar 1-0 à Espanha?
Percebo a paixão pelo futebol. Só não percebo é como é que as pessoas acham que algo tão banal justifica tudo e mais alguma coisa. Toda a gente se revolta contra o que ganham os deputados da Assembleia da República, e ninguém se revolta com o que ganham os futebolistas.
Ficaram curiosos com a fotografia que escolhi para ilustrar este artigo? Sabem de onde a tirei? Daqui: link.
Da próxima vez que ficarem vermelhos de raiva por qualquer coisa relacionada com o dito “desporto rei” lembrem-se do número 71.

P.S. Se estiverem numa onda particularmente sadomasoquista, e ainda tiverem a calculadora à mão, diz que o Benfica paga 4 milhões de Euros por ano ao Jorge Jesus.
Uma ajudinha: 71 x 4 = 284

P.P.S. Se estiverem MESMO numa onda sadomasoquista… o CR7 ganha 4 vezes mais do que o JJ.
Nova ajudinha: 71 x 4 x 4 = 1.136

P.P.P.S. Vemo-nos dentro de 12 séculos...