Portugal tem no século XX um património musical inestimável. Muitos foram
os intérpretes e compositores que para tal contribuíram, desde a música
tradicional ao rock, sendo Zeca Afonso porventura aquele que mais se destacou.
Toda a gente conhece o legado musical de Zeca Afonso, sejam as canções de
intervenção, sejam as músicas populares. As suas letras marcaram, e continuam a
marcar, a cultura nacional. Quem não conhece, pelo menos, o refrão d’Os Vampiros? Não existe música
portuguesa sem Amália e Zeca Afonso.
Eu sou de uma geração posterior a Zeca Afonso, portanto já só o conheci
“em segunda mão”. O que conheci em primeira mão foram as muitas bandas
absolutamente geniais que Portugal viu nascer e/ou crescer nos anos 80 e 90
(quando o Q.I. global da Humanidade ainda não tinha atingido valores
negativos). Madredeus, Resistência, Sitiados, Xutos & Pontapés, são apenas
alguns dos nomes que fizeram parte da minha infância. E são também os nomes que
vim a encontrar, por acaso, todos reunidos num CD de tributo a Zeca Afonso… que
data de 1994!
Não fazia ideia que existia este “Filhos da Madrugada Cantam Zeca
Afonso”, e quando o vi no “templo do consumo” do costume fiquei ainda alguns
minutos de nariz torcido a pensar “hmmm, isto às tantas é capaz de ser uma
grande banhada”. Mas os nomes que constavam no CD falavam por si próprios, e
por seis euros…
E de repente, numa expressão popularmente portuguesa, caí de cu. O duplo-CD reuniu em 1994
(não é difícil perceber o porquê da data, basta fazer as contas e não ser
completamente ignorante) alguns dos principais nomes da música nacional da
altura. Para além dos que já mencionei lá em cima é ainda possível encontra
GNR, Ritual Tejo, Sétima Legião, UHF, Delfins, etc. O resultado é assombroso!
Épico, em alguns casos. São as canções geniais do Zeca reinterpretadas por uma
nova geração de autores. Bem sei que esta onda das reinterpretações na grande
maioria dos casos corre muito mal. Aqui, felizmente, não podia estar mais longe
da estatística.
Desde logo, a abrir o primeiro CD, “Maio maduro Maio” no estilo brilhante
dos Madredeus, ao que se seguem outras interpretações fabulosas como “A formiga
no carreiro”, pelos saudosos Sitiados, e onde destaco “Canto Moço”, pelos
Ritual Tejo.
O segundo CD é bastante mais fraco, embora tenha alguns temas
interessantes. Na sua maioria parece que a decisão de quem organizou a
colectânea foi “deixar os restos para o fim”.
Ouvir Zeca Afonso é sempre uma delícia, e ouvi-lo pelas vozes de uma
geração de músicos talentosos é um prazer imenso. Estas jóias da nossa História
e da nossa cultura não podem cair no esquecimento.
Resta-me falar da minha canção preferida de Zeca Afonso: “Canção de Embalar”.
É uma das criações monumentais do nosso património artístico, daquelas que
disputam o pódio com “A Canção do Mar” (onde, heresia, prefiro a versão da
Dulce Pontes), ou “O Pastor” (sempre, sempre, sempre Madredeus). A letra d’A
Canção de Embalar é um colosso. A música não lhe fica atrás. E a forma como o
Zeca a cantou… é daquelas coisas que deixam uma sala em silêncio. Tendo isto em
conta, era obviamente a canção que mais me “preocupava” no álbum. A
interpretação era dos “Diva” (confesso o meu pecado, não os conhecia). Estaria
à altura? Já tinha ouvido várias versões desta obra-prima, e a maioria justificava
um processo em tribunal por crime de atentado contra o património... Caí de
joelhos. Não era possível! Pegaram num tema genial e tornaram-no divino. Não há
palavras depois disto. É apenas fechar os olhos.
Magistral. Conseguir descobrir uma coisa destas “perdida nos confins da
História de Portugal” é um sonho. Que saudades destes tempos em que Portugal
tinha bandas de uma qualidade grandiosa, por oposição aos cretinos que nos dias
que correm pegam numa guitarra acústica, dizem umas banalidades com voz
engonhada, e acham que são artistas.
Há que não deixar cair no esquecimento este nosso vasto património
musical. Até porque – e apesar de eu ter prometido a mim próprio nunca falar de
política neste blogue – as palavras de Zeca Afonso fazem cada vez mais sentido
hoje em dia…