Uma imagem impressionante: um belo
jovem em semiperfil, iluminado de forma sensual. Gabriel calculou que tivesse
sido pintado enquanto Rafael vivia e trabalhava em Florença, provavelmente
entre 1504 e 1508. O que acontecera ao velho tinha sido uma pena. Teria sido um
prazer restaurar um quadro daqueles.
Regressou ao átrio de entrada,
parou e olhou para baixo. Tinha deixado marcas de sangue ao longo do chão de
mármore.
Eu não gosto de livros policiais ou de espionagem. Esta é, seguramente, a
melhor frase possível de utilizar quando se pretende escrever um artigo de
opinião sobre um livro de assassinos e espiões. Mas, alas, é mesmo assim. Exceptuando as obras de Agatha Christie ou de
Conan Doyle, sempre que me falam em “histórias de crime e investigação” eu
respondo com um bocejo.
Portanto, não sei bem o que estou a fazer ao escrever um artigo sobre um
livro de Daniel Silva, mas alguma coisa daqui há-de sair.
A personagem central de “O Assassino Inglês” é Gabriel Allon, um
talentoso restaurador de obras de arte que é contratado para recuperar – nada
menos que – um Rafael (sim, o das Tartarugas Ninja). Acontece, meramente, que
Gabriel é um operativo dos Serviços Secretos Israelitas, e quando chega a casa
do dono do quadro encontra-o morto. A partir daqui, ladies and gentlemen, é apertar o cinto, porque o livro vai ser
mesmo bom!
A história desenrola-se entre três países: Suíça, Itália, e o nosso
Portugal. E logo aqui salta à vista a qualidade de escritor de Daniel Silva.
Cada um dos países, e respectivos povos, é magistralmente ilustrado pelas
palavras do autor. O ambiente que ele consegue criar em cada uma das zonas é
delicioso. Os italianos são aqueles tipos estereotipadamente mafiosos, muito
ligados às tradições, à família, à terra. Os portugueses são os santinhos
simpáticos, altamente coscuvilheiros, sempre disponíveis para dar um sorriso
aos estrangeiros (aqui captou-nos na perfeição). E depois temos os suíços. Eu
não gostava de ser suíço e ler este livro…
Toda a acção do livro é desenvolvida em redor do roubo de objectos de
arte pelos nazis, da colaboração silenciosa por parte da Suíça, e do papel que
os bancos suíços tiveram nesta história que (verdadeiramente) nunca foi contada
até ao fim. Alguns pormenores do livro dão a sensação que o autor o escreveu
como uma espécie de “ajuste de contas com a História”. A forma como ele
descreve o papel cínico do povo suíço e a sua ausência de ética em redor do
tema chega a ser sufocante.
Daniel Silva é um escritor fabuloso, e provavelmente um dos melhores do
género (embora, honestamente, eu não seja propriamente entendido na matéria
para o poder afirmar). A escrita do homem é viciante, e a forma como acaba cada
capítulo com um cliffhanger (qual é a
palavra portuguesa para isto?) é aterrorizadora.
Não é possível escrever sobre um livro destes sem fazer spoilers (novamente, alguém que me
arranje uma palavra em português…). A acção é extraordinariamente bem
temporizada, raramente entrando em excessos, e nunca reduzindo o livro a uma
banal história de “vamos lá falar novamente de nazis”. Nada disso. Todo o
elenco é inteligentemente inserido na história, dando-lhe uma dimensão muito
forte e apaixonante. Tirando o final demasiado “James Bondesco” para o meu
gosto, a história é inteligente, surpreendentemente culta, chegando quase a
parecer uma grande reportagem de um jornal de referência, onde polícias e
criminosos são meros adornos. Evitando resvalar para o excesso literário, e
intercalando a “alta espionagem” com os problemas pessoais de alguns dos
intervenientes, poucas coisas sabem tanto a um murro no estômago no encontro
com a realidade como quando lemos o segundo “Como é que foi Berna?”
Fico, não obstante, com a sensação que este livro foi escrito “para ser
adaptado ao cinema”. Há capítulos inteiros que tresandam a tal. A boa escrita
alternada com algumas sequências quase-estapafúrdias de “vamos lá começar a
explodir com tudo” cheira mesmo a Silva a acenar com o guião a algum produtor
interessado de Hollywood. Algumas das piores partes do livro são precisamente
essas que parecem tiradas de um filme. Mas como são poucas não chegam para
estragar a história.
Não creio que me vá tornar subitamente um fã de policiais/espionagem, mas
também não creio que este seja o último livro de Daniel Silva que vou ler…
Para terminar, por norma gosto de complementar os meus artigos aqui no
blogue com “informação de interesse” adicional. Voltando ao tema do livro, pesquisei
um pouco mais por esse universo infinito que é a internet, e descobri que
existem inúmeros movimentos que procuram precisamente ir ao encontro das muitas
obras de arte roubadas pelos nazis. Para termos uma ideia da dimensão da
espoliação bastará este excerto: Out of
600,000 works of art looted during the Nazi era from 1933 to 1945, an estimated
100,000 are still missing, misidentified or misappropriated.(Fonte: link)
Inclusive, há uma base de dados internacional onde é possível consultar
os detalhes relativos às obras desaparecidas.
E, para termos ideia do quão certeiro (não-ficcionado) é o tema abordado
no livro de Daniel Silva, O Assassino
Inglês foi escrito em 2002; veja-se esta notícia do Der Spiegel publicada em 2007: link
Der Spiegel.