EUFORIA! O PAULO BENTO FOI DEMITIDO! Não se assistia a tamanho êxtase em
Portugal desde que o Mestre de Avis foi proclamado rei nas Cortes de Coimbra em
1385. O Facebook foi inundado por uma catadupa de comentários, e as próprias
televisões nacionais dedicaram a notícia de abertura a tão marcante feito na
História de Portugal. Algumas dedicaram mais de 10 minutos da abertura,
trouxeram comentadores em directo para se pronunciarem sobre o acontecimento, e
prontamente anunciaram emissões especiais nos canais por cabo, recheadas de
painéis de comentadores, porque nestas ocasiões é sempre importante ter pessoas
de referência que vão à televisão dizer umas coisas.
Como não podia deixar de ser, o ex-Seleccionador teve direito à sua
indemnização. Ainda se falou em 3 milhões de Euros, mas parece que ele até foi
um gajo porreiro e se ficou por 1/3 desse valor.
E é precisamente a partir deste ponto que surge este artigo, para os meus
estimados amigos tresloucados com demasiado tempo livre, e boa vontade para ler
as deambulações que por aqui volta e meia escrevo. Pensemos então num
trabalhador acima da média estatística. Vamos dizer, para efeitos de exercício
pedagógico, que ele ganha mensalmente 1.000 Euros. Até é um ordenado bastante
acima da média do que se ganha em Portugal. Feitas as contas, ao final do ano,
com direito a subsídio de férias e de Natal, o trabalhador em questão leva para
casa 14.000 Euros. Na realidade é mentira, porque entre 10 a 20% deste valor desaparece
em impostos. Mas, novamente, no espírito meramente académico deste exercício,
vamos considerar – utopicamente – que todo o dinheiro ganho vai para a conta do
trabalhador.
Mais. Vamos viciar as variáveis desta equação, e assumir que ele se
mantém empregado toda a vida, e nunca leva cortes no salário, nem nada que se
pareça. Ao fim de 10 anos amealhou 140.000 Euros. Se ponderarmos, em média, uma
carreira contributiva de 45 anos de trabalho, o afortunado trabalhador, que
passou a vida inteira a trabalhar das 9 às 18, conseguiu a proeza de receber
630.000 Euros pela sua vida inteira de trabalho. Estará velhote, perto dos 70
anos, mas trabalhou durante 45 anos para juntar 630.000 Euros. Para chegar ao
valor da indemnização de despedimento do ex-Seleccionador teria que ter
trabalhado mais de 71 anos (mais do que aqueles que tem de vida), e com todos
os pressupostos fiscais e laborais “ligeiramente irrealistas” que defini para
este exercício.
RESUMO DO EXERCÍCIO: o ex-Seleccionador assinou um papel no dia 11 de
Setembro de 2014 e recebeu o equivalente a 71 anos de trabalho de um comum
cidadão Português, que recebesse 1.000 Euros e não pagasse quaisquer impostos.
Portanto, chegamos ao número mágico que dá título a este artigo: 71. E é
neste número que gostaria que ficassem a pensar se tiverem paciência de ler
isto até ao fim. Acima de tudo, pensem neste número da próxima vez que pensarem
em futebol, ou ficarem indignados porque “estes tipos não jogam nada”, ou
provocarem os vossos amigos porque “hehehehe, a lagartada voltou a levar nas
trombas”, ou porque “os lampiões perderam mais uma final qualquer”. Este é um
número que convém ficar presente de todas as vezes que nos debruçarmos sobre o
mundo do futebol. O mundo que é composto por tipos que recebem astronomicamente
mais do que os valores que serviram de base a este nosso exerciciozinho para
passarem o tempo a dar uns pontapés na bola. Sim, são uns pontapés bonitos. Eu
também gosto de futebol (gostava?). E fazem-no em hotéis de cinco estrelas, com
SPA, piscinas de luxo, comidinha da boa, com direito a prémios de jogo e mais
um sem-fim de mordomias. Enquanto isso, “no mundo real”, uma legião de gente
silenciosa estudou anos a fio, levanta-se às 6 ou 7 da manhã para ir trabalhar
um dia inteiro, andou na faculdade a pagar para estudar, muitas vezes com
sacrifício dos pais, e depois chega a casa e fica em frente à TV a ouvir os
comentadores dos programas desportivos a dizer “pobrezinho do Zé, está em baixo
de forma, não se pode exigir mais ao jogador…”
Já muitos amigos argumentaram comigo: “Ora, não sejas assim, porque
aquilo exige muito trabalho e muito treino!”. OK, o que eu faço também exigiu
muito trabalho e muito treino, e até hoje não vi os meus chefes a pagarem-me um
hotel de cinco estrelas para o fazer. O meu local de trabalho não é propriamente
um centro de estágios com SPA e salões para jogar snooker e Playstation. Vê-se
nos rostos dos jogadores o “esforço” do seu árduo trabalho cada vez que há
reportagens que filmam os treinos. Os seus rostos estão tristes e cabisbaixos,
cansados, exauridos… Depois olho para os rostos das pessoas do mundo real, que
às 8 da manhã estão a apanhar o metro em Entrecampos. São parecidos…
“Ora, não sejas assim, o futebol também é cultura!”. Humm… eu aqui
invocaria alguma “objecção de consciência”, mas, novamente, para efeitos
democráticos do presente exercício, vamos dizer que sim. Não tenho a certeza
que alguma federação tenha pago ao José Luís Peixoto uma estadia num hotel de
luxo enquanto ele escreveu o seu último livro. E também desconfio que o
director do Museu Nacional de Arte Antiga não recebe um milhão de Euros por
ano. E confesso que não estou a ver alguém a virar-se para o Saramago e dizer
“olha, o teu último livro foi mau… portanto toma lá um milhão de Euros”.
“És mesmo do contra! Não vês que a Selecção é um orgulho nacional? Pensa
no prestígio de Portugal!”. A sério? O “prestígio de Portugal” é ter uma dúzia
de tipos aos pontapés à bola? Temos investigadores que ganham reconhecimento
internacional pelas suas descobertas na área da ciência e cá dentro nem têm
direito a nome, pois passam apenas numa curta entrevista já no encerramento dos
jornais televisivos (Ângela Abreu, 2013, premiada pela NASA – sim, a NASA dos
foguetões…). Temos escritores que lá fora vencem prémios de “melhor obra
literária” (já alguém ouviu falar em Gonçalo M. Tavares?), e que o prestígio
que merecem é ter direito a um programinha de TV numa estação bafienta às 2 da
manhã. Temos uma diáspora de gente pelo mundo todo, que fez, faz, e fará, obras
magníficas… e o “prestígio de Portugal” jaz em ganhar 1-0 à Espanha?
Percebo a paixão pelo futebol. Só não percebo é como é que as pessoas
acham que algo tão banal justifica tudo e mais alguma coisa. Toda a gente se
revolta contra o que ganham os deputados da Assembleia da República, e ninguém
se revolta com o que ganham os futebolistas.
Ficaram curiosos com a fotografia que escolhi para ilustrar este artigo?
Sabem de onde a tirei? Daqui: link.
Da próxima vez que ficarem vermelhos de raiva por qualquer coisa
relacionada com o dito “desporto rei” lembrem-se do número 71.
P.S. Se estiverem numa onda particularmente sadomasoquista, e ainda
tiverem a calculadora à mão, diz que o Benfica paga 4 milhões de Euros por ano
ao Jorge Jesus.
Uma ajudinha: 71 x 4 = 284
P.P.S. Se estiverem MESMO numa onda sadomasoquista… o CR7 ganha 4 vezes
mais do que o JJ.
Nova ajudinha: 71 x 4 x 4 = 1.136
P.P.P.S. Vemo-nos dentro de 12 séculos...
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