Primeiro foi a febre do feiticeiro adolescente com
fita-cola nos óculos. Depois veio a febre dos vampiros fluorescentes contra os
lobisomens depilados. E agora? Agora a febre que anda a varrer a literatura
mundial chama-se “As Crónicas de Gelo e Fogo”, também conhecidas por “A Guerra
dos Tronos”.
Esta saga de literatura fantástica insere-se na herança
deixada pelo inigualável “O Senhor dos Anéis”. Ou seja, cavaleiros, donzelas,
feiticeiros e dragões. Felizmente, ao contrário de 90% do lixo que anda por aí
a ser publicado dentro da temática da fantasia medieval, existem razões válidas
para ter atenção a esta obra.
George R. R. Martin é alguém muito experiente no que toca
a escrever. Tem uma longa carreira na televisão e no cinema como argumentista,
e graças a isso adquiriu uma considerável experiência que lhe permitiu ter uma
base muito sólida antes de se lançar na escrita d’A Guerra dos Tronos. E esse é
um dos argumentos – quiçá o mais forte – para justificar uma cuidada atenção à
obra. A escrita de Martin é notavelmente profissional, e em nada elaborada.
Percebe-se que ele não passa muito tempo à procura das frases bonitas e que
soam bem. Ele pega na caneta e escreve de rajada. Talvez por isso é que os
livros da saga tenham perto de 700 páginas cada um…
Comecei a descobrir, por acaso, A Guerra dos Tronos antes
de esta se tornar um fenómeno global. Tinha comprado o primeiro volume há
muitos anos, quando a editora Saída de Emergência o lançou em Português, e
tive-o guardado durante uns bons aninhos. Foi preciso eu começar a lê-lo para
de um dia para o outro o mundo inteiro se lembrar de pegar nos livros e
torná-los na nova moda da literatura global.
Mas vamos ao que interessa. O primeiro volume da saga,
que se chama precisamente “A Guerra dos Tronos”, é uma obra-prima da literatura
fantástica. Um daqueles livros para os quais nada nos pode preparar. Frio,
directo, emocionante, genuíno, apaixonante em toda a sua dimensão. Há muito
tempo que não virava as folhas tão avidamente. As personagens são moldadas por
camadas atrás de camadas de densidade. Não há super-homens, somente personagens
cheias de falhas, medos, hesitações, coragem, inveja, soberba. A caracterização
é a chave do sucesso da saga, quase tudo o resto é mera decoração. Nota-se a
experiência de Martin na dimensão de personagens como Tyrion Lannister, Tywin
Lannister, Catelyn Stark ou John Snow.
A acção decorre num mundo imaginário onde o reino
principal está estruturado por várias famílias nobres. É precisamente uma
dessas famílias o enfoque da história: a Família Stark. Lorde Eddard Stark é o
Senhor do castelo de Winterfell, onde habita com a sua esposa, os seus cinco
filhos legítimos e um filho bastardo. Tudo muda quando o Rei Robert Baratheon
visita Winterfell. Pelo meio, há uma muralha gigante na terra do gelo, que tem
algo que espreita por trás de si, há um perigo que espera do outro lado do mar,
e há uma série de famílias vassalas dispostas a trair os seus patronos.
Isto não é uma obra imaculada ao bom estilo Arturiano.
Isto é uma escrita rude, básica, que não poupa nas palavras vernaculares, nas
atitudes grosseiras, no asco do ambiente medieval.
Há duas maneiras de ler A Guerra dos Tronos: adquirindo
os originais, ou a versão Portuguesa. Certo e sabido é que os originais são
sempre superiores às traduções. Mas eu gosto de ler em Português, e estes
livros até nem são daqueles que necessitam ser lidos no original. O trabalho da
Saída da Emergência está bastante bom, embora algumas opções da tradução sejam
controversas. O tradutor, Jorge Candeias, coloca uma “nota” no primeiro volume
onde explica as suas opções, que o levam a traduzir alguns termos, e a deixar
outros no original. Assim, convive-se com Winterfell, Harrenhall, e Rochedo
Casterly, Correrio. Se me agrada? Não muito. Chega para me incomodar? Nem por
isso. Incomoda-me mais o facto de a edição Portuguesa dividir cada livro em dois,
e colocar cada um à venda por € 19. É absurdo. Em qualquer país do mundo os
leitores podem escolher se querem uma edição compacta ou uma edição de luxo. Em
Portugal, não. Temos que comprar os calhamaços caros, de capa semi-rígida, a €
19. Até somos um país rico, e tudo… Cheios de poder de compra.
Mas voltemos ao fenómeno. A história começou este ano a
ser adaptada a série televisiva, em mais uma produção magistral da HBO. O
casting está perfeito, a adaptação muito boa, e o tema do genérico é divino (Ramin Diawadi).
Está declarada a intenção de adaptar um livro por ano, o
que vai levantar uma série de problemas. Desde logo, George R. R. Martin tem o
condão de fomentar a ira dos fãs pelo tempo que demora a lançar cada livro. Anos,
numa saga que ainda vai no 5º livro, embora cada um tenha em média 700-800
páginas. Mas eu creio que esta era a intenção original de Martin, criar o
primeiro épico colossal que cria um mundo inteiro imaginário, dando palco a
todas as personagens, onde até o mais imperceptível figurante tem direito a um
nome e uma história. Literalmente. Ora, se isto inicialmente até parece uma
abordagem nova e interessante, rapidamente se esgota. Aliás, após o primeiro
livro – absolutamente fascinante – torna-se difícil perceber a razão de
continuar a história, já que o autor parece deliciar-se a escrever palha,
enfiando capítulos atrás de capítulos onde nada acontece na história. Eu vou de
momento no 5º livro da edição Portuguesa (o terceiro da original), e ao fim de
300 páginas nada ocorreu. Há personagens que estão exactamente no mesmo ponto
onde estavam no final do livro anterior.
Há uma série de “falhas” (se é que eu tenho autoridade
para criticar uma obra desta envergadura) que a meu ver acabam por diminuir o
interesse da história com o tempo. A quantidade de personagens secundárias que
roubam tempo à narrativa é agonizante. Por vezes, há personagens que
desaparecem durante tempos infinitos, enquanto a história vai engonhando a
passo de caracol. Se isto resulta numa série de televisão, numa série de livros
tenho as maiores dúvidas. George R. R. Martin usou inteligentemente o seu
“know-how” adquirido para dar vida a um grande épico de fantasia, mas temo que
a filosofia de “fazer render o peixe” venha a diminuir consideravelmente a
longevidade do mediatismo e sucesso d’A Guerra dos Tronos.
A título de curiosidade, descobri recentemente que Martin
foi um dos argumentistas por trás de uma série da minha infância, de que muitos
certamente se recordarão: A Bela e o Monstro. A série, de 1987, fazia uma
adaptação da história popular à Nova Iorque dos dias de então. Teve algum
sucesso, muito graças à interpretação do “Monstro”, Vincent, pelo
extraordinário Ron Perlman. Se bem que durante muito tempo tive dúvidas se a
Linda Hamilton fazia de Bela ou de Monstro…
Enfim, concluindo… Quando um escritor pensa numa
história, e decide qual é o seu princípio, o seu meio, e o seu fim, a obra
resulta bem. Quando um escritor começa a escrever, e vai escrevendo,
escrevendo, escrevendo, enquanto a coisa render… a obra perde-se a meio do
caminho.
George R. R. Martin tem uma capacidade extraordinária
como escritor, conseguiu criar algo muito superior numa temática que tem
passado a última década a ser inundada de lixo para consumo rápido, mas parece-me
que está a cair no pecado da gula e aos poucos a deixar fenecer a sua criação.
Pode ser que eu me engane. Esperemos que sim, e que no
fim o Tyrion seja rei…
Para quem tiver ficado interessado, a Saída de Emergência
disponibiliza gratuitamente 100 páginas do primeiro livro neste link.
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