- Vou então começar pela minha vinda para o Paço Real de Enxobregas. Sou
descendente, por via paterna, do califado dos abássidas. Quando Afonso III
conquistou todo o Algarve, Aloandro Bem Bekar, que governava o Castelo de Faro
e de quem sou filha, submeteu-se ao seu poder e, para provar que estava de
boa-fé, ofereceu-me ao rei, que me trouxe para a Corte. Contava quinze anos
quando isso aconteceu e fiquei privada dos mimos da minha mãe, que nunca mais
vi.
Na última década o género da ficção histórica
ganhou uma expressividade que não pode ser menosprezada. É uma fórmula de
sucesso, pois brinca com o nosso imaginário, e leva-nos a olhar para as nossas
referências históricas e pensar nos vários “ses”.
Intelectual brilhante como sou, já li
diversos livros do género, e quando deparei numa livraria com uma obra de uma
autora Portuguesa, a ficcionar em redor de um mistério na corte do quinto Rei
da minha Pátria, pensei “porque não”?
O Segredo de Afonso III é talvez o livro mais difícil sobre o qual opinar que já me passou pelas
mãos. Adoro-o ao mesmo tempo que o detesto. Vamos lá por partes… A história
passa-se em dois momentos: Lisboa, ano 1279, e Roma, na actualidade. Ou seja,
as duas cidades mais importantes da História da Humanidade. A arquitectura do
livro está organizada de forma a os capítulos irem alternando entre si, e
portanto decorrendo em simultâneo nas duas épocas. A fórmula é bem conseguida,
e Maria Antonieta Costa consegue fazer uma coisa extraordinária que é “escrever
de forma diferente em cada uma das épocas”. É difícil explicar isto aqui, mas
digamos que a escolha de palavras e a narração na primeira pessoa vs narração
na terceira pessoa é uma forma muito inteligente de permitir distinguir na
perfeição o momento em que estamos em cada capítulo. E é aqui que começa a
controvérsia, porque parece que o livro foi escrito não por uma, mas por duas
pessoas diferentes. Toda a narrativa que decorre no século XIII é brilhante,
numa escrita estupenda, com a utilização de vocabulário muito cuidado e
apropriado (a autora é formada em História e Cultura Medieval), com frases em
latim, e uma quantidade considerável de designações adequadas à época. Por
oposição, toda a narrativa que decorre na actualidade é um desastre absoluto,
com personagens sem qualquer interesse, cheias de clichés, e – devo acrescentar
– de uma mediocridade confrangedora.
Este livro é também uma tentativa de escrever
o “Código Da Vinci” Português, pois está envolto em mistérios e enigmas
históricos que nos dias actuais vão sendo desvendados pelas personagens nossas
contemporâneas. Mas a autora, que se nota estar perfeitamente à vontade na
parte que diz respeito à História, é de fugir a sete pés no que concerne ao
“romance moderno”. São capítulos inteiros dignos de uma Margarida Rebelo Pinto.
Para os mais distraídos, acabei de ofender a autora até à quadragésima geração…
A pimbalhice pseudo-romântica que polui toda a acção que se desenrola em Roma é
de cortar os pulsos com uma colher de pau romba!
A personagem central é Eunice Bacelar, uma
historiadora que decide pesquisar nos arquivos do Vaticano para escrever uma
obra sobre o nepotismo dentro da Igreja Católica. É nesse processo que descobre
um pergaminho que conta a história de Madragana, uma barregã moura de D. Afonso
III. Ora, como 99% dos meus caros amigos que estão a ler isto não fazem a mais
pequena ideia do que significa barregã, tal como eu não fazia, desatem todos a
correr até ao dicionário mais próximo. Se este livro não tiver servido para
mais nada, ao menos já me ensinou uma palavra nova para insultar de forma
intelectual as pessoazinhas que me chateiam.
O livro oscila entre momentos de grande
inspiração, em particular com um enfoque muito grande na parte da alquimia, e
que me levou durante muitos capítulos a pensar que ia sair daqui uma coisa
diferente e interessante, e momentos de pasmaceira total e absoluta, caindo no
ridículo das conspirações clichés e de um absurdo tão grande que as histórias
do Tom & Jerry parecem mais verosímeis.
Quanto ao cerne do livro, o tal “segredo do
Rei”, é uma desilusão tremenda, perfeitamente banal, e meramente fruto do
mediatismo cor-de-rosa contemporâneo. Não vou “revelar” qual o segredo, por
respeito a quem eventualmente o ler, mas qualquer pessoa com um QI minimamente
aceitável já deve ter ficado com uma boa ideia do que se trata.
E é isto a bipolaridade que me provocou a
leitura do livro. Por um lado os rasgos de espectacularidade em redor do
ambiente medieval, perfeitamente caracterizado, interessante, exaustivo, e
sedutor, por outro lado a total banalidade sem qualquer interesse que tenta
encostar a história moderna a um
Dan-Brown-meets-Margarita-Rebelo-Littlechicken-and-fails-utterly. O meu
conselho: quem pegar no livro arranque todos os capítulos passados na
“actualidade” e leia a parte baseada na História.
Sendo um primeiro romance da autora, é de
elogiar um bom trabalho na parte “ficção histórica”, e estou certo que se ela
escrever mais livros focados unicamente neste aspecto terá em mim um fiel
leitor. Se optar pela veia Margarítica, usarei os meus dotes alquímicos para
lhe despejar H2SO4 pela garganta abaixo.
Como nota final, é de referir que a autora
colocou no final do livro um quadro onde faz o contraste entre o que é “baseado
em factos reais” e o que resulta da imaginação da autora. É uma forma
interessante de acabar o livro, na minha opinião.
Para terminar, e para “something completely
different”, depois de ler o livro fiquei com curiosidade de pesquisar um pouco
mais por El-Rei “O Bolonhês” (ainda se lembram das aulas da 4ª classe?).
Descobri algo fascinante graças à Wikipedia. A Biblioteca Nacional de Portugal
disponibiliza versões digitais no seu site de alguns documentos históricos. Foi
aí que descobri a “ ” da autoria
de Rui de Pina. Trata-se de um documento do século XV, copiado no século XVIII
nesta versão disponibilizada online.
Pode para muitos parecer algo sem grande interesse, mas para um apaixonado por
História, isto é algo de me levar às lágrimas. Obrigado Biblioteca Nacional de
Portugal.
Segundo a lenda cristã, os segredos da natureza tinham sido divulgados por anjos
que se haviam apaixonado por mulheres terrenas. Estas terão sido as primeiras
feiticeiras e bruxas, com longos cabelos soltos e em desordem, assim como
Medeia ou como Canídia que, ainda por cima, os adornava com pequenas serpentes.
A alquimia era, antes de mais, apresentada como um sistema de autotransformação
em que a transmutação ocorria livre na natureza, intrigando os pesquisadores.