O patrão estava
furioso. Ia e vinha sem parar do compartimento dos pescadores enquanto eles o
seguiam em silêncio, os olhos cheios de ódio como se o fossem matar.
No dia seguinte,
decidiu-se que o barco iria prosseguir na sua rota, em parte para apanhar mais
caranguejos e em parte para procurar os botes desaparecidos. «Perder cinco ou
seis homens não tem qualquer importância, mas seria uma pena perder os botes.»
Há livros que provavelmente nunca leriamos na
vida se não nos fossem oferecidos. É bem provável que isso me acontecesse com
“Kanikosen – O Navio dos Homens”. Acrescento que tal seria uma pena.
A história narrada no livro é bastante
simples e interessante, mas muito mais importante é a História (assim mesmo,
com “h” grande) do próprio livro. Kanikosen
foi escrito na clandestinidade no Japão em 1929 (dez anos antes do início da
Segunda Guerra Mundial, que alterou por completo o rumo do país.
Mas comecemos pela história que o livro
conta. É bastante pequena e foca-se num grupo de homens que trabalha num
barco-fábrica de pesca de caranguejo em alto mar. O que chama a atenção no
livro é perceber as condições desumanas em que os homens trabalham. Isto não se
trata de mera ficção. Nos dias de hoje poucos de nós conseguiremos percepcionar
o que foram os abusos sofridos pelos trabalhadores no início do século XX. Os
operários do navio passam frio, trabalham horas a fio, dias seguidos, em alto
mar, padecem de doenças, e são espancados brutalmente pelo patrão quando este
acha que eles estão a “mandriar”. A curta história desenrola-se calmamente,
atentando nos desejos dos homens, na saudade das famílias, e na tortura que é
viver aquela situação. “- Vamos até ao Inferno.”, é a frase que abre o livro.
Doentes, cansados, famintos, assim passam até ao momento em que compreendem que
é chegada a hora de lutar pelos seus direitos. Não será necessário ser grande
entendido em História para ter a noção do efeito que esta “propaganda vermelha”
teve num país fechado como o Japão imperial do início do século XX.
Passemos então à História do livro. O seu
autor, Takiji Kobayashi, tinha 26 anos quando o escreveu. Desde então, foi alvo
de perseguições e discriminação, até que em 1933 foi capturado pela Polícia
Secreta, espancado brutalmente, e acabando por morrer. Tinha 30 anos.
É difícil nos dias de hoje ter sensibilidade
suficiente para perceber o quanto algumas pessoas sacrificaram para lutar pelos
direitos de dignidade mínima, e para combater as injustiças sociais. Felizmente
o século XX fez-nos avançar muito.
Mas eis-nos chegados ao século XXI, quando as
condições laborais começam a dar sinais fortes de degradação, quando algumas
pessoas sentem que são exploradas para que alguns patrões (como os do livro)
enriqueçam. O livro, passados 80 anos da sua publicação, torna a conquistar um
lugar central na atenção de vários públicos, tornando-se um bestseller inesperado em vários países.
Ajuda-nos a perceber algo que muitas vezes esquecemos: certas coisas na vida
são cíclicas, e convém estarmos atentos ao mundo que nos rodeia para não
cometermos os mesmos erros.
A título de curiosidade, o nome do navio onde
decorre a história é Hakko Maru. Se
juntarmos a isto parte do nome do autor, obtemos “Kobayashi Maru”, algo que não
será estranho aos fãs de Star Trek. Coincidência? Não creio. O Kobayashi Maru
era o teste que a Starfleet impunha
aos seus cadetes e que era impossível de vencer, uma “no win situation”, as o
qual o Capitão Kirk conseguiu ultrapassar de forma inesperada.
A escrita de Kanikosen é pesada, violenta, e pouco aconselhada a leitores mais
convencionais (tias de Cascais, e leitores assíduos de Paula Bobone e companhia).
Propaganda Comuna chamar-lhe-ão
alguns; Oportunismo Mediático dirão
outros. Quanto ao Grande Crítico Literário THE PSY, este limitar-se-á a citar
algo que estamos fartos de ouvir nos filmes: History repeats itself.
Cada carril de cada via-férrea de Hokkaido correspondia, literalmente, ao
cadáver de um jornaleiro. E os blocos de betão armado para construir os portos
eram os corpos dos operários enterrados em vida, como «colunas humanas».
Aqueles trabalhadores de Hokkaido eram conhecidos como «polvos». O polvo, para
sobreviver, come os próprios tentáculos. Eram exactamente isso! Assim surgiu
essa classe de exploração primitiva que não temia nada. Os patrões recolhiam
benefícios às pazadas. E racionalizaram-nos habilmente, associando-os a frases
como «desenvolvimento da riqueza nacional». Os capitalistas eram muito
astuciosos. Os trabalhadores morriam à fome, ou eram espancados até à morte «em
nome da nação».
O Navio dos Homens, Takiji Kobayashi, Clube do Autor, 2010
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