Ora bem, comecemos o ano cinematográfico com Tarantino. Há maneiras
piores de começar o ano… Quentin Tarantino é o “realizador fétiche” dos
americanos e de Hollywood. Como eu costumo dizer, se Tarantino colocasse uma
câmara a filmar o trânsito na A5 o mundo do cinema classificá-lo-ia como uma
obra ímpar e visionária. Verdade seja dita, Tarantino merece boa parte dos
elogios que lhe são feitos. O homem de facto tem um talento considerável, e tem
o seu estilo. Pode-se gostar mais, ou gostar menos, mas Tarantino é Tarantino.
Vamos então a “Django Libertado”. É um bom filme? Sim, sem dúvida. É uma
obra-prima? Talvez seja. Justifica-se a veneração de que tem sido alvo? Aí já
tenho as minhas dúvidas… Mas enfim, “não se pode dizer de Tarantino algo menos
do que genial”, senão os groupies
entram em combustão espontânea.
O filme desenrola-se dois anos antes da eclosão da Guerra Civil
Americana, numa altura em que o esclavagismo negro se encontrava no centro do
conflito social e moral. Alguns toques no argumento escrito por Tarantino são
de facto brilhantes. Outros são apenas clichés à procura de mediatismo. O
começo do filme é o que mais me deslumbrou. A introdução da personagem do Dr.
King Shultz (Christoph Waltz) é toda ela uma sequência magnífica. Absurda,
surrealista, “Tarantinesca”, mas espectacular. O caçador de prémios que vem
numa carroça que tem uma mola com um dente gigante em cima, só mesmo Tarantino
se iria lembrar de algo deste género. Waltz ganhou a nomeação para o Oscar de
Melhor Actor Secundário, e pela meia-hora inicial do filme é mais do que
justificado. Só que nas duas horas seguintes o papel resvala demasiado para uma
cópia quase exacta do (muito mais brilhante) Hans Landa, em Sacanas Sem Lei.
Já em Sacanas Sem Lei o que
mais me agradou foi a sequência inicial, tendo boa parte do restante filme
alternado entra as longas cenas “de pastilha elástica” e os momentos de
espectáculo puro. Django segue à risca o mesmo padrão.
O grande talento de Tarantino passa pela mistura de todos os géneros
possíveis e imaginários, abordando SEMPRE toques culturais fabulosos (que
certamente passam completamente ao lado da maioria dos espectadores). Ver uma
carga de cavalaria num western ao som
do Requiem de Verdi é um luxo, ao
qual só se pode acrescentar todas as referências ao folclore alemão que o filme
aborda. Vale a pena ler a “trivia” no IMDB só para ter noção da quantidade de
referências culturais que são integradas no filme. Juntem-se a isto os momentos
de comédia puramente hilariantes, como o dente gigante em cima da mola, ou o
fato de valete que Django veste, alternados com sequências tão brutais que chegam
a incomodar, como a luta de mandingo (que não passa de violência gratuita), e
percebe-se que Tarantino é perfeito na manipulação de emoções.
Reconheço que nenhum realizador tem o talento de Tarantino para associar
música e filme. A capacidade que o homem tem para escolher canções e associá-las
a uma sequência de filme, essa sim é extraordinária e inigualável. Colocar um
rap a meio de um western sobre
escravatura? Porque não? E depois há a pontaria certeira a escolher actores.
Todos aqueles que trabalham com Tarantino são fenomenais. Quer os que se
repetem de filme para filme, quer os que são chamados para participar na
família. Em Django até acho que o Actor Principal, Jamie Foxx, é o que menos
brilha, mas ao lado de Samuel L. Jackson e Leonardo DiCaprio não se esperava
outra coisa. Jackson é, como habitualmente, fenomenal a interpretar um velho
cínico e abusador. Quanto a DiCaprio, sou grande fã dele há muitos anos, e
acho-o um actor memorável, creio que tem um desempenho muito bom no filme, mas
mesmo assim até o acho um dos menos marcantes dos últimos anos (recordar-me de
Shutter Island… deuses!). Aproveito para mencionar (SPOILER) que uma das cenas
mais emblemáticas da personagem ocorre quando durante uma discussão à mesa de
jantar corta a mão num copo de vidro. Não estava no guião. Aconteceu mesmo. E
DiCaprio continuou a cena sem parar para respirar. Tarantino, inteligentemente,
deu-lhe ainda mais fôlego. Ainda no campo dos actores, há que tirar o chapéu ao
curto papel de Don Johnson, que enche o ecrã enquanto está em cena.
Dispensava o “excesso absurdo de surrealismo”, como os baldes de sangue
que saltam cada vez que alguém leva um tiro (por mais pequeno que seja), mas, contas
feitas, é um filme muito bom, embora me pareça demasiado “mais do mesmo”, e se
trocarmos os esclavagistas sulistas por nazis, temos um Sacanas Sem Lei remixed. No filme dos nazis temos duas longas cenas
absolutamente brilhantes – a cena de abertura na quinta e a cena do jogo na
taberna – alternadas com muita “pastilha elástica”, e neste temos as mesmas
duas cenas absolutamente brilhantes – a cena de abertura com a carroça do dente
e a cena do jantar em casa de Calvin Candie – alternadas com muita “pastilha
elástica”. Mas, fosse metade do cinema desta qualidade, e eu nunca sairia da sala
de cinema com ar de frete. Não obstante, vê-lo nomeado aos Oscars para “Melhor
Filme” acaba por me deixar com aquele sorriso cínico que há muitos anos tenho
em relação às escolhas feitas pela Academia…
Pelo Melhor:
O dente em cima da mola gingona, que de tão surreal deixa os espectadores
a rir descontroladamente, e totalmente desarmados. A fusão de géneros cinematográficos
completamente incompatíveis, que Tarantino consegue transformar numa “coisa
Tarantinesca que no fim resulta muito bem”. A imensidão de referências subtis a
inúmeros pormenores deliciosos. Tarantino é um ávido consumidor de literatura,
música e cinema clássico, e deixa-o transparecer na perfeição.
Pelo Pior:
A sensação “mais do mesmo”. Os “exageros exagerados”. Ok, quando vamos
para um filme de Tarantino já esperamos que haja exagero, mas existe um ponto
em que “too much is too much”.
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