“Mas tens um problema, Faulques. Um
problema sério. Nenhuma fotografia pode consegui-lo. Eu sou mais prática e
limito-me a coleccionar elos quebrados: essas ruínas com antecedentes
clássicos, achados dos imbecis literatos românticos e revisitadas por artistas
ainda mais imbecis. Mas não é o aroma do passado o que procuro. Não desejo
aprender, nem recordar, mas largar amarras. Dito na tua gíria psicopata, esses
lugares desertos, mecanismos e objectos quebrados são as fórmulas matemáticas
que indicam o caminho.”
Eis-me de volta ao maldito espanhol. Desta feita para falar d’O Pintor de Batalhas, do qual já
transcrevi um excerto por estas paragens. Antes de se falar deste livro há que
referir que Pérez-Reverte foi durante muitos anos repórter de guerra. Ora, a
personagem central do livro é um repórter de guerra (fotógrafo) na reforma. É,
portanto, impossível dissociar a ficção da própria experiência pessoal do
autor.
A história centra-se na personagem de Faulques, um fotógrafo na reforma
que habita num farol na Costa Espanhola, e passa os tempos a pintar um mural,
que representa uma batalha medieval, no interior do farol. A pacatez e solidão
de Faulques são interrompidas pela chegada de Ivo Markovic, uma espécie de
“fantasma do passado” que vai levar “o pintor de batalhas” a um exercício de
memória, recordando boa parte da sua vida, das suas fotografias, e dos cenários
de guerra por onde passou. E é nesse “recordar é viver” que surge a fortíssima
personagem de Olvido Ferrara, colega fotógrafa com quem Faulques viveu uma
intensa paixão. E este é o ponto alto do livro, pois a relação entre as duas
personagens é quase mágica. Daquelas relações que só podem existir na
literatura ou no cinema, entre duas personagens tão magnéticas que é difícil
não as ver com o espelho uma da outra. Não sei até que ponto é que esta relação
é mera ficção, e não fruto de algo vivido pelo próprio escritor há muitos anos,
pois a força que caracteriza as personagens é impressionante. É um escritor
magnífico, sem dúvida, mas custa-me a crer que escreva sobre uma paixão com
tanta vivacidade sem se ter vivido (e morrido) algo semelhante.
Depois disso, Pérez-Reverte faz aquilo que faz melhor: avassala o leitor
com pormenores ricos do tema que aborda no livro em questão. Neste caso é a
fotografia e a pintura. São longos os parágrafos a descrever a forma como o
pintor prepara as tintas, os materiais que usa, os pintores em quem se
inspirou. Igualmente longos são os parágrafos a descrever a máquina com que
tirou “aquela fotografia”, e toda a parafernália técnica que envolve um simples
disparo.
Algo que salta à vista é a profunda revolta da personagem (do autor) com
a idade. Alguém que está na meia-idade e já não gosta de si, do seu corpo, do
seu quotidiano, e recorda com tremenda nostalgia os tempos da juventude. Este é
um livro, também, sobre o não gostar de envelhecer, embrulhado em fortes doses
de uma filosofia melancólica que emerge dos diálogos que Faulques e Markovic
mantêm durante o seu encontro.
E não há muito mais a dizer sobre o livro. É um livro pequeno, e não é
dos melhores de Pérez-Reverte. Não deixa de ser uma boa leitura, mas está
bastante longe de uma Tábua de Flandres
ou de um Cemitério dos Barcos Sem Nome.
Mas, como sempre, o maldito espanhol não falha ao servir-nos uma galeria de
personagens cativantes, cheias de vida e experiências que merecem ser
partilhadas.
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