Já por aqui falei anteriormente da minha relação amor/ódio com George RR Martin e a saga “As Crónicas de Gelo e Fogo” (Game of Thrones). Tendo terminado recentemente o sexto livro da edição portuguesa (segunda parte do terceiro livro da versão original – “Storm of Swords”) devo dizer que “A Glória dos Traidores” aumentou consideravelmente o meu amor pela saga… e o meu ódio por Martin.
Depois
de ter sofrido uma travessia pelo deserto ao ler o livro anterior, onde
basicamente gramei 500 páginas onde nada se passou, e onde julguei que a saga
tinha finalmente terminado visto o seu autor estar a entrar em “modo
telenovela” para fazer render o peixe, estava receoso de pegar neste livro. Se
há coisa que não suporto é ter a sensação que um escritor coloca a história a
dar voltas e voltinhas só para engonhar, e basicamente é isso que acontece na
primeira parte do livro cinco (versão PT). Já pouca pachorra existe para ler
mais capítulos da Daenerys e o seu never-ending-safari, já pouca pachorra
existe para ler mais capítulos da Arya e o seu interminável “agora vou para
Norte, fui raptada, agora vou para Sul, fui raptada outra vez, agora vou para
Norte, fui mais uma vez raptada”, e já pouca pachorra existe para o “não sei o
que fazer com os dois Starks pequenos, e portanto vou colocá-los a dar voltas
sem destino”.
Eis
que começa “A Glória dos Traidores”. E começa logo mal! Ena, mais um capítulo
do safari da Daenerys… tou feito. Mas logo de seguida a história começa a dar
ares de querer romper com a rotina, e de se preparar para acelerar.
Faço
aqui uma pausa para alertar quem estiver a ler isto que daqui para a frente vou
aprofundar o que ocorre no livro, o que implica que haja revelações sobre
episódios do mesmo. Quem ainda não chegou a este ponto, e não pretende
“estragar a surpresa” do que vai ocorrer, deve parar de ler… NESTE PRECISO
MOMENTO!
É
inevitável uma pessoa apaixonar-se pelas personagens de um livro. Não é
precisamente para isso que eles são escritos? Para seguirmos as tristezas e as
alegrias das personagens? Os seus desafios e tudo o mais? Com Martin, é melhor
pensar duas vezes… Pouco escritores têm tanto talento a criar personagens
deslumbrantes. E poucos escritores têm tanto desprezo pelas personagens que
criam. Martin é uma espécie de psicopata que se diverte a criar dezenas de
personagens para uma história, para depois ter a oportunidade de fazer
genocídios seguidos.
Quando
“A Glória dos Traidores” começa, a história está de tal forma dispersa que a
única coisa que a parece segurar é o confronto Lannister/Stark. E, verdade seja
dita, depois do livro anterior, a única personagem que parece estar a caminhar
nalgum sentido é Robb. Aguardava-se com alguma expectativa o confronto entre as
duas Casas. Até que Martin decide entrar em modo genocídio. É bastante
frustrante ler toda a sequência do “Casamento Vermelho”. Em primeiro lugar
porque é bastante denunciada. Todo o ambiente deixa antever que “algo está
prestes a passar-se”. E depois, quando traiçoeiramente Robb e Catelyn são
mortos, a sensação com que uma pessoa fica é: ok, mataste as únicas personagens
que não andavam feitas tontinhas a passear pelo mapa sem nada fazer. Diz-me lá
quais são as razões para continuar a ler o livro? A personagem do Robb até é a
menos interessante de toda a saga, mas era a única que agitava minimamente a
história por estas alturas. É algo idiota ficar com a sensação de ter lido 800
páginas à espera do confronto entre os exércitos, e agora de repente… não. Mas
pior do que matar Robb era matar Catelyn. É das personagens que mais
despercebidas passam na história, mas provavelmente a mais interessante de
todas. É a única que revela estar à margem de toda a “cena épica”, tentando
mostrar um ar feroz e resoluto, mas estando na realidade em pânico, agonia e
tristeza surreal. É uma personagem demasiado humana para “A Guerra dos Tronos”.
E portanto, a dada altura fica a sensação que a história fica reduzida ao “cliché
das criancinhas super-poderosas que andam pelo mundo a fazer coisas
fantabulásticas”.
Tão
ou mais cliché é ver, meia dúzia de páginas depois, um outro casamento, que
resulta num outro genocídio… Aqui até podia ter havido o factor “uau”, mas
quando as coisas se tornam tão sem pés nem cabeça, esse efeito dissipa. E quem
acompanha a saga apercebe-se que Martin para “fingir” que foge aos clichés
habituais da literatura de fantasia criou o seu próprio cliché que é “vou fazer
exactamente o oposto do que toda a gente está à espera”. Mas qualquer fórmula
de sucesso deixa de resultar quando é utilizada ad nauseam. As reviravoltas na história chegam a ser de tal forma forçadas
que acabam por chatear.
O
que vale a Martin é ele escrever muito bem. Muito bem MESMO. É um
extraordinário contador de histórias, e mesmo brindando os leitores com
episódios que dão vontade de “parar de ver a série a meio” consegue de um
momento para o outro relançar a história. E é isso que acontece neste livro.
Creio que o plano inicial estava bastante longe do rumo que Martin escolheu (se
é que ele alguma vez teve uma coisa dessas), mas à semelhança da maioria dos
escritores de fantasia decidiu “acrescentar mais uns quantos volumes já que
isto está a vender bem”.
A
pior cena do livro, e que é uma daquelas que me fará nunca colocar Martin no
panteão dos escritores de fantasia, é o reencontro dos gémeos. A cena é tão
estúpida e atroz que demonstra que o escritor se deleita em cenas de sexo e “gore”
apenas para chocar audiências e vender, vender, vender. Truques rasteiros e
verdadeiramente óbvios. Cersei está ajoelhada perante o altar onde jaz o corpo
inanimado do filho. O seu irmão incestuoso regressa depois de semanas de
cativeiro. E o que é que fazem imediatamente? Sexo em cima do altar onde está o
cadáver do filho de ambos. O imbecil do escritor chega ao ponto de se deleitar
a descrever que Cersei está com o período. Se isto é literatura de qualidade,
então vou ali e já volto. É muito mau. Pornografia reles, dispensa-se.
“A
Storm of Swords”/A Glória dos Traidores é um livro sem grande coerência, apesar
de ser para muitos dos fãs o melhor da saga (não compreendo como). Há inclusive
cenas que deixam uma pessoa a coçar a cabeça. Um capítulo termina com Sam e
Gily a darem de caras com uma estranha figura montada num alce gigante, e
alguns capítulos mais tarde estão ambos na Muralha, cara-a-cara com Bran, e
quase logo a seguir já Sam está ao lado de Jon. Para quem se dá ao luxo de
gastar centenas de páginas a engonhar onde nada se passa, causa alguma
estranheza ver estes saltos na história. Mas, se o que vem na wikipedia é
verdade, a versão original do livro tinha mais de 1500 páginas, que os editores
cortaram para 900, portanto talvez seja de assumir que “algo foi engolido pela
destroçadora de papel”.
Merece
ainda particular atenção a cena da fuga do Tyrion. Porque toda ela, a meu ver,
é uma sinfonia sem nexo. O anão está estarrecido na cela, borrado de medo ao
ponto de se encostar à parede quando pensa que o vêm buscar para a execução. Na
realidade é o irmão que o vem ajudar a fugir, o que faz sentido. Agora, quando
a meio da fuga “do nada” aparece uma escadaria com 300 degraus que vai dar
directamente ao quarto do pai - eu vou interromper aqui a prosa por um momento
só para visualizarmos uma escadaria com trezentos degraus, isso mesmo,
TREZENTOS, e ponderar a facilidade com que um anão de pernas atrofiadas a
subiria, no momento em que está borrado de medo e a fugir da prisão – e, em
mais uma daquelas reviravoltas “Martinianas” (ou Marcianas, se preferirmos)
mata Tywin Lannister. Estamos a falar de uma das personagens com mais potencial
em toda a história. Tywin é um gigante. É aquela personagem intocável, demasiado
grande. E Tyrion, que até é o único gajo decente na saga toda, dá-se ao luxo de
subir 300 degraus, a meio da sua fuga, para ir matar o pai, quando até aqui
vimos sempre o conflito pai-filho não amado, onde sempre ficou bem claro que aquilo
que Tyrion mais queria na vida era ficar bem visto aos olhos do pai. Se este o
matasse numa decisão emotiva, até acharia normal, agora fazê-lo com frieza,
racionalidade, E SUBINDO 300 DEGRAUS COM AS SUAS PERNINHAS ATROFIADAS PARA
MATAR UM DOS MELHORES GUERREIROS/ESTRATEGAS DO REINO… simplesmente: não. É
decepcionante. É Martin no seu pior. Matar personagens só por matar. Sem servir
qualquer propósito na história. Sem coerência. Só para chocar os leitores nas
pausas da pornografia com sangue à mistura.
Eu
até arriscaria dizer que estes eram os dois piores momentos da saga, mas até
tenho medo que está para vir, portanto é melhor não fazer apostas.
Mas
lá está, Martin escreve mesmo muito bem. O ambiente das histórias é fantástico,
sedutor, inebriante, viciante. Perdoamos-lhe todas estas cretinices para nos
continuarmos a deslumbrar com a riqueza da história. E creio que o segredo é
mesmo esse. Li algures num blogue que faz uma crítica ao livro que ao contrário
da maioria das obras onde as personagens são o centro da história, aqui tal não
acontece. As personagens são meros adornos numa história demasiado forte e
vibrante que parece ter a força da Muralha, e existir por si só. O epílogo é
precisamente exemplo disso. Quando Catelyn-zombie aparece, descrita daquela
forma, os nossos olhos abrem-se, as narinas dilatam, e um sopro escapa-se-nos.
Até pode ser um misto de espanto inesperado com o tal “lá vem a merda do cliché
do vamos lá pôr aqui outra vez qualquer coisa para apanhar de surpresa toda a
gente”. Mas é um facto que resulta. Tanto, que mal acabei “A Glória dos
Traidores” fiz algo que não contava fazer.
Comecei
de imediato a ler “A Feast for Crows”.
Eis-nos,
então, aqui chegados. Não arrisco uma conclusão sobre o livro. Para muitos este
é o melhor livro da série, para outros tantos é um livro tão mau que arruína a
saga. Eu não me incluo na legião de “adoradores-zombie” que acham que tudo o
que Martin escreve e faz é ouro (como o que Tywin caga), nem me incluo na turba
ululante que lança ameaças de morte ao autor da obra. Ameaças de Morte só mesmo
ao George Lucas pelo assassinato d’A Guerra das Estrelas, mas enfim, não
divaguemos. Mantenho-me um ávido leitor d’As Crónicas de Gelo e Fogo. Reafirmo
a qualidade da criação no âmbito do património da literatura fantástica, mas
não me coíbo de tecer duras críticas a George RR Martin por optar tantas vezes
por episódios de “folhetim porno-pop/gore” que acabam por diminuir uma obra que
poderia rivalizar com “os melhores entre os melhores”.
Uma
coisa é certa: uma obra que a nível mundial coloca tanta gente a discutir sobre
si mesma, é porque tem algo que merece ser levado muito a sério. E se um escritor leva traulitadas tão apaixonadas por parte dos seus fãs... é porque está no caminho certo.
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