A noite não
comunica com o dia. Arde nele. Levam-na para a fogueira ao alvorecer. E,
juntamente com ela, a sua gente, os beberrões, os poetas, os amantes. Nós somos
um povo de degenerados, de condenados à morte. A ti não te conheço. Conheço o
teu amigo turco; é um dos nossos. A pouco e pouco desaparece do mundo, engolido
pela sombra e pelas suas miragens; somos irmãos. Não sei que dor ou que prazer
o empurrou para nós, para o pó de estrela, talvez o ópio, talvez o vinho,
talvez o amor; talvez alguma obscura ferida da alma, bem escolhida nos recessos
da memória.
Ninguém começa um livro desta forma.
É daquelas aberturas ao nível de "Um Conto de Duas Cidades", onde a
velocidade das palavras se sobrepõe a qualquer espécie de "situação de
abertura" para enquadrar o leitor na acção. O livro começa assim, e nunca
mais abranda.
"Fala-lhes de Batalhas, de Reis
e de Elefantes" é uma daquelas obras inesperadas que nos caem nas mãos com
uma violência inusitada. Isto não é um livro. Antes, é um devaneio estridente
de um fôlego único que atropela as palavras antes sequer destas surgirem na
mente. E é brilhante.
Mathias Énard tenta fazer-nos entrar
na mente de um dos maiores génios da Humanidade (o maior?): Michelangelo
Buonarrotti. E agora a pergunta para um milhão de Euros: como é a mente de um
génio criativo da magnitude de Michelangelo? Exacto, um turbilhão alucinante de
ideias, cores, poesia, música, arquitectura, raiva, frustração, cheiros -
respirar fundo! - pessoas, aves, movimento, desejo, emoção, línguas, ferramentas.
E o livro é-nos servido desta forma, numa sequência de mini-capítulos que
acompanham uma fictícia viagem do Mestre a Constantinopla, em segredo, como
forma de se vingar do Papa Júlio II, e oferecer os seus dotes de artista ao
Sultão.
Michelangelo tem uma ponte para
projectar, mas isso é um mero pormenor na história. Os cinco sentidos do génio
devoram tudo o que o rodeia.
Há capítulos que arrancam em alta velocidade onde apenas figuram listas
enormes de ingredientes, aqueles que Michelangelo encontra nos mercadores
azafamados por onde passa. Não existe verdadeiramente uma história contida
neste livro. O que há são os estímulos sensoriais que a personagem assimila
neste dia-a-dia alienígena.
Esta talvez seja a altura indicada para referir a tradução. Das primeiras
coisas que me saltou à vista quando olhei para a capa foi a referência “Tradução
de Pedro Tamen” em letras de tamanho consideravelmente generoso. Ora,
exceptuando aqueles casos em que temos “As Minas de Salomão, com tradução de
Eça de Queirós”, não é propriamente habitual ver o nome do tradutor merecer
tamanho destaque na capa. Neste caso é perfeitamente justificado. A beleza do
texto na imortal Língua de Camões é marcante. O exotismo de conciliar vocábulos
como “dragomano”, “caravançarai”, ou “janízaros”, com a restante prosa,
fazendo-o com o alto nível que o texto merece, é verdadeiramente razão q.b.
para ter destaque na capa.
Mas voltemos à história, para referir a ampla dimensão de uma obra tão curta,
que se esvai em meia-dúzia de saborosas páginas, para mencionar o apetitoso que
é ver as rivalidades entre Michelangelo e
Rafael, ou Bramante. Ver o humor de chamar “Júlio” ao macaco de estimação que
lhe faz companhia. E perceber que tudo isto se pode enquadrar tão bem com uma
personalidade voraz como a do génio Florentino. Muitas recriações históricas
acabam por estragar as personagens em que se baseiam por mera idiotice dos
autores, que preferem inventar escândalos sexuais, ou outras parvoíces que
tais, e que pouco ou nada têm a ver com a personalidade da personagem. Mas aqui
é precisamente o contrário. Todos os pensamentos mundanos parecem assentar que
nem uma luva nesta fascinante personagem.
Não tenho talento para conseguir
explicar por meras palavras a satisfação que é ler, e poder ter livros destes
nas mãos. A tristeza com que fico quando penso que há tanta gente neste mundo
que infelizmente não pode provar desta Ambrosia.
E a cólera que me assoma às amígdalas quando penso que há gente que perde
dinheiro – e acima de tudo tempo – a ler aqueles belos pedaços de esterco que
geralmente figuram entre as listas de bestsellers.
Eu tenho a sorte de ter amigos fenomenais, com bom gosto, estimulantes, e que
me colocam livros destes nas mãos. Dizer mil vezes obrigado não chega para
mostrar a excitaçãozinha histérica com que fico quando devoro páginas deste
calibre. Ler livros desta qualidade é comer gelados da Carte d’Or com a
caçarola da sopa.
Mathias Énard é um daqueles
escritores a quem o mundo tem a obrigação de estar atento. Demonstrar tamanho
talento para a escrita, aliado à sublevação imperial das palavras que usa, é a
garantia de muitas páginas futuras de elevada qualidade.
Et voilà, ficam assim a
saber, como tinha prometido, qual foi o melhor livro que li em 2014.
E, porque não resisto, mesmo que
corra o risco de transcrever metade do livro para aqui, calo-me muito
caladinho, com mais uns quantos pulinhos de excitaçãozinha histérica, com
apenas mais um, ou dois parágrafos. Ou três. Ou quatro…
A algumas centenas de metros para trás deles, a
montante, ergue-se a forma escura do andaime do botaréu da ponte que Miguel
Ângelo não chegará a ver.
Abraça longamente Manuel, como se fosse outro que ali
estivesse em seu lugar, e depois sobe para bordo. Sente uma dor surda no peito,
e atribui-a ao seu ferimento; sobem-lhe lágrimas aos olhos.
O único objecto que trouxe consigo é o seu caderno,
onde anota algumas últimas palavras, enquanto o navio passa a ponta do Serralho.
Aparecer, manifestar-se, brilhar.
Constelar, cintilar, extinguir-se.