Espártaco deixou-se cair,
procurando encostar-se a uma árvore. Objectou que pertencia a uma família que
nunca se submetera, que só venerava os deuses da felicidade, da força e da
liberdade. Ninguém, nem os Persas, nem os Dácios, nem os Romanos, tinham
conseguido reduzi-los à escravatura. Fora este desejo de ser tão livre quanto
um lobo que o levara a fugir do acampamento dos auxiliares. Não recusara ser
humilhado pelo centurião Nómio Cástrico ou pelo tribuno Calvício Sabínio para
se submeter a deuses ainda mais exigentes, também eles desejosos de acorrentar
os homens.
- Livre ou morto! – declarou
Espártaco.
Era uma vez um vampiro chamado Edward, que se apaixonou por uma rapariga
chamada Bela. Viveram uma linda história de amor, até que um dia um lobisomem
seminu os matou a todos. The End. E o
mundo rejubilou.
Não, meus caros, eu não perdi o juízo de vez. Passo a explicar a razão
desta estranha introdução. Espártaco - A
Revolta dos Escravos foi-me oferecido no dia dos meus anos por duas
pérfidas criaturas que colocaram no livro uma capa destacável do Twilight. Imaginem, portanto, o ar de
choque do Prodigioso Psy ao abrir uma prenda, e a ficar naquela situação em que
quer atirar “a coisa” pela janela, mas ao mesmo tempo quer manter a compostura,
a boa educação, e seguir a tradição de agradecer qualquer prenda que nos seja
dada, mesmo que seja um cocó ressequido. Mesmo que seja o Twilight. Um dia, por este acto atroz, estas pérfidas criaturas
serão levadas na barquinha do Caronte, ao longo do Rio Styx, e terão que
prestar contas pela sua vilania, juntamente com Judas, Brutus, e outros
traidores inomináveis.
Mas falemos então de Espártaco, que com o reluzente Edward tem em comum
apenas a primeira letra do nome. Este foi o primeiro livro que li de Max Gallo,
autor sobejamente reconhecida pela sua obra de ficção histórica. Como é do
conhecimento geral (ou pelo menos espero que seja…), este é um estilo do qual
sou particularmente entusiasta, e tratando-se de algo associado à História de
Roma, não podia haver melhor conjugação de constelações para me deixar a
salivar.
Pois nunca até hoje detestei tanto um livro quando o comecei a ler!
Exacto. Assim mesmo. Os primeiros capítulos foram uma tortura. Mas como é que
este gajo é um escritor tão famoso? Mal descreve as personagens! Espártaco é um trácio, e faz-se acompanhar
por uma sacerdotisa de Dioniso chamada Apolónia, e por Jair, um judeu. E
pronto, é só isto. Andam por aqui, andam por ali, e não passa disto. Mas que
raio… Querem ver que ainda largo isto e acabo por ir ler o Twilight? Não há enquadramento na acção, a história salta para trás
e para a frente sem qualquer fio condutor, as personagens têm apenas direito a
nome próprio, e pouco mais… Pois é, Max Gallo não é propriamente um escritor
entusiasmante quando se começa a ler. O facto de ser professor de História pode
ser parte da explicação. As personagens (pelo menos neste livro) não são o eixo
central da acção. Mas quando o leitor começa a perceber que a personagem principal
é a história em si… a coisa muda de
figura. A atenção ao detalhe é notável, e a acuidade histórica salta à vista.
Num primeiro embate, as personagens são mesmo aborrecidas. Espártaco é
apenas um trácio, um pouco grunho, que repete ad nauseum “eu quero ser livre, eu quero ser livre, eu recuso-me a
ser escravo”. A única personagem feminina do livro todo é Apolónia, a
sacerdotisa de Dioniso, que basicamente é uma boneca insuflável com pernas. Página
sim, página não, a moça lá arranja maneira de estar envolvida em “qualquer
coisa sexual”.
Espártaco diz aos soldados que vão
seguir em frente. Apolónia agarra-lhe no pénis e fazem sexo. As oliveiras ao
longo da estrada estavam sem azeitonas. Apolónia mordisca os mamilos de
Espártaco e fazem sexo. O antigo gladiador reúne-se com os seus companheiros,
para combinarem um plano de ataque contra os Romanos, e, enquanto isso, Apolónia
dá uma cambalhota por baixo dele, abre as pernas, e fornicam que nem coelhos.
Depois da batalha, Espártaco está cansado. Encosta-se a uma pedra para fazer a
sesta. Apolónia agarra-lhe no pénis e fazem sexo. A meio do caminho, Espártaco
tropeça numa pedra. Apolónia está deitada no meio do chão de pernas abertas… e fazem
sexo!
Eu não sou propriamente um gajo púdico, e percebo que uma sacerdotisa de
Dioniso seja tão “entusiasmada” como o coelhinho da Duracell na noite de
núpcias, mas tratando-se da única mulher que aparece na história… Caneco! Seria
de esperar que as leitoras do Sr. Gallo lhe tivessem um ódio cego pela forma
como retrata as mulheres, mas o mais giro é que em 1975 foi galardoado com o
Prémio das Leitoras da revista Elle!
Ok, acho que me vou cingir a comentar o livro em si. Passado o incómodo
inicial, a obra começa verdadeiramente a revelar-se. Alguns dos diálogos são de
uma simplicidade magnífica, em particular aqueles que Espártaco mantém com
Jair, o curandeiro judeu.
«O que significa ser livre num
mundo todo ele subjugado?»
A descrição de todo o ambiente – a tal personagem principal do livro – em
torno das escolas de gladiadores é de gelar o sangue. Temos aquela visão
romântica dos combates de gladiadores que nos foi “vendida” pelo cinema ao
longo das últimas décadas, mas Max Gallo faz questão de descrever pesadamente o
que seria o dia-a-dia daquela gente cuja vida de nada valia, e que servia
meramente como carne para canhão. Há uma crueldade lancinante em algumas
descrições que nos roubam todo o brilho de Hollywood.
E a história vai-se desenvolvendo, e Espártaco vai reunindo o seu
exército de escravos que faz frente à todo-poderosa Roma. Espero que ninguém
esteja assustado com a possibilidade de eu fazer spoilers. É que não estou propriamente a falar do Harry Potter, e
tudo isto passou-se em 71 AC. Portanto, espero que por esta altura do campeonato
toda a gente saiba que isto não vai
acabar bem… Continuando, o peso da revolta que vamos acompanhando começa a
ser evidente. Não se desafia Roma. Espártaco começa a ter os problemas de
liderar um exército de escravos revoltosos (e é aqui que o toque de professor
de História de Max Gallo faz brilhar o livro). Há, ao longo do livro, passagens
introspectivas que causam grande impacte quando lidas no momento certo, a
partir do momento em que começamos a sentir empatia com as personagens.
«Foi nesse momento que Espártaco se
sentiu cansado e lhe ocorreu que comandar homens também era uma escravatura.
Que um homem talvez só fosse livre quando caminha sozinho pela floresta,
debaixo do céu da sua infância.»
Ok, chamem-me mariquinhas, mas ler estas coisas num livro que tenho nas
mãos causa-me arrepios no corpo. E é por isso que a Literatura será sempre a
mais nobre de todas as Artes, em especial quando se toca a genialidade com
palavras tão simples.
E a carga emotiva da história continua, à medida que nos apercebemos que
se aproxima “aquele momento”. Todos conhecemos o mapa de Itália, e sabemos que
um exército de milhares de escravos não tem para onde fugir. A perseguição das
legiões de Roma é lenta, mas inexorável. O resultado final adivinha-se
facilmente. Deverão ter sido semanas terríveis, aquelas vividas no Sul da
Itália perante “the might of Rome”. Aquele nome de colosso que tudo esmaga no
seu caminho. E a história intensifica-se. Queremos mudá-la. Não queremos que
acabe assim. Não queremos que Crasso e Pompeu tenham sucesso. Mas Espártaco
sabe que o vão ter. Que já não há mais para onde fugir.
«Espártaco abraçou Apolónia, depois
estreitou-nos um a um contra o peito. – Que a minha vida, a nossa revolta façam
parte de um livro, como aconteceu à vida do povo judeu e à do povo grego.»
Vários livros, um filme, uma série de televisão, e inúmeras outras
coisas. A história de Espártaco é daquelas que nunca morrerão. O final do livro
é sufocante, sempre em crescendo, num
ritmo agonizante, palpitante, avassalador. Como é que um livro que começa tão merdosamente
termina neste nível? Socorro, mãezinha, manda os homens maus embora. Ajuda os
revoltosos a fugir, ajuda-os a escapar, não os deixes ser apanhados.
Suspiro.
Não há muitos livros assim.
Mentira, felizmente há!
E é tão bom um livro fazer-nos sentir assim. Aquele desespero, o sufoco
de ver as peças a moverem-se no tabuleiro, e nós, impávidos leitores, incapazes
de alterar a história.
E pronto, pela quantidade de citações que aqui coloquei julgo que deu
para perceber que devo ter gostado do livro. Falando de citações, deixo aqui
mais uma, apenas pelo interesse da ligação histórica à Grã Pátria Lusa.
«Teria de prevenir o Senado dos
perigos que ameaçavam Roma e, portanto, a república. As legiões de Pompeu, que
tinham vencido em Espanha os exércitos rebeldes de Sertório, e que estavam de
regresso, teriam de se empenhar na perseguição de Espártaco.»
Como recomendação final, para quem gosta de História, procurem saber o
que Crasso fez aos escravos revoltosos após a morte de Espártaco. E quando
souberem, vejam qual é a distância entre Roma e Cápua…
P.S. O segundo livro da colecção tem por título “Nero – O Reinado do
Anticristo”.
P.P.S. Sim. É óbvio que sim…
Espártaco – A Revolta dos Escravos,
Max Gallo, Edições ASA, 2007
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