Cada vez que
Christopher Nolan anuncia o lançamento do seu próximo filme o mundo parece
ficar, momentaneamente, em suspenso. Não é para menos, Nolan é o génio
cinematográfico que nos anos mais recentes nos fez chegar filmes memoráveis
como The Dark Knight (2008) e Inception. Portanto, é normal que o
mundo pare, escute, e olhe.
Eu estava de
relações cortadas com Nolan desde 2012, por causa do inenarrável The Dark Knight Rises, e portanto este Interstellar apresentava-se como o filme
em que ele tinha que se superar, e fazer-me esquecer aquele trágico acidente
ferroviário.
Antes de
começar a falar de Interstellar é
necessário deixar bem claro que sempre que escrevo alguma coisa neste blogue
faço-o de acordo com a minha opinião que procuro sustentar da forma mais
objectiva possível, nunca me deixando seduzir pela “onda colectiva”. E é por
isso que a “onda colectiva” bem pode continuar a berrar que o famigerado filme
de 2012 supramencionado é o best movie
ever, que eu continuarei a chamar-lhe um belo pedaço de caca wookie.
Mas, para
permitir desde já desanuviar o ar, e uma vez que já sofri ameaças à minha
integridade física (feitas com piratas-ninja-wizards, entre outras) para a
eventualidade de dizer menos bem do filme, começo já por dizer: Interstellar é um GRANDE filme! Pronto,
respirem fundo. Está dito. Mas – há sempre um “mas”, e o diabo está nos
detalhes – não subscrevo de forma alguma que este seja um dos melhores filmes
de todos os tempos, uma obra-prima absoluta, e mais o sem-fim de qualificações
que a “onda colectiva” quer fazer passar como verdade indiscutível a todo o
custo.
Todos os filmes
do brilhante Nolan têm um ponto em comum: são emocionalmente fortíssimos, e
fazem-nos pensar para lá das linhas de orientação. E conseguem esta proeza no
meio de um espectáculo visual e tecnológico que deixa qualquer espectador
embevecido. E Interstellar é
precisamente isso, um colosso emocional que nos põe durante mais de duas horas
e meia a pensar numa série de coisas. E é precisamente neste ponto que eu
começo a divergir da “onda colectiva”. Todas as opiniões que por aí grassam dão
a entender que a primeira parte do filme – aquela que se passa na Terra,
maioritariamente na quinta de Cooper – é uma seca, e que o filme fica fabuloso
a partir do momento em que entram no Espaço. Discordo, em grau superlativo
absoluto sintético. Toda a primeira parte do filme é o que me prende a atenção.
É onde está a história, a emoção, a força e a fraqueza humanas. E boa parte
deve-se a uma personagem a quem a “onda colectiva” nem prestou qualquer
atenção: o avô, interpretado por John Lithgow.
Nolan tem por
hábito abordar nas suas obras temas muito actuais. A praga que parece ser
responsável pela devastação das colheitas no planeta é uma referência subtil às
alterações climáticas. Mas até nem é a mais importante. Há diálogos que passam
despercebidos, e que são maravilhosos. Quando o avô refere que no seu tempo
éramos “6 biliões de pessoas, todas a quererem ter direito à mais recente
engenhoca que surgia todos os anos”, é uma crítica directa ao nosso consumismo
acéfalo e estúpido. Não adianta olhar para o lado. Somos todos igualmente
culpados. A forma como o avô “repreende” o genro, quando este parece não querer
dar tanta atenção aos filhos como a que é necessária, e a fabulosa deixa “it’s
a parents-teachers meeting, not grandparents”. Até mesmo o momento
humorístico “I want a hotdog!”. Lithgow é marcante, e um dos actores mais
subavaliados de Hollywood. Tudo junto, está menos de cinco minutos em cena, e é
para mim a personagem mais memorável.
A cena com mais
significado do filme é a reunião de Cooper na escola. O debate entre ensino e
ciência versus estupidez é arrebatador.
Ainda na
“primeira parte de seca”, temos a extraordinária relação entre pai e filha, com
Mathew McConaughey e a jovem Mackenzie Foy a terem ambos prestações – essas
sim! – para lá das estrelas. Raras vezes um duo pai-filha foi tão convincente
no ecrã. Que lição de actuação! Que delícia… É pena que dure tão pouco tempo,
porque depois disto parece não haver actores no resto do filme. Anne Hataway,
Michael Caine, Jessica Chastain, e todos os restantes, parecem eclipsar-se
durante duas horas. O próprio McConaughey, quando afastado dos filhos, apaga-se
um pouco. Há apenas uma breve excepção, graças à personagem de Matt Damon, que
embora do ponto de vista de interpretação seja “Matt Damon a fazer de Matt
Damon”, em termos de dimensão e interesse da personagem é algo que abana um
bocado a história.
E com isto
entramos na escala épica do filme. Com a ambição desmesurada de ser uma
história avassaladora que nos faz olhar para a Humanidade e para o Universo. É
aqui que eu acho que o filme não cumpre a 100%, e que me fez sair da sala de
cinema a dizer “foi bom, mas faltou aqui qualquer coisa”.
O duelo entre
ciência e emoção é muitas vezes o que nos põe a salivar durante o filme. Mas há
alturas em que fica a sensação que se entrou um modo “vamos pegar na Teoria da
Relatividade de Einstein e martelar aqui qualquer coisa”. Do ponto de vista
científico, ao que tudo indica o filme é bastante bem sustentado, tendo sido
inclusivamente desenvolvido tendo como consultor um dos grandes Físicos
teóricos da actualidade (e não estou a falar do Sheldon Cooper). E é
precisamente essa razão que me faz ficar ainda mais desagradado quando, sem
mais nem menos, querem aludir ao Amor como uma espécie de variável física para
integrar numa equação. Juntar a Lei da Gravidade e o Amor como X+Y = Z é uma
parolice tremenda. Eu até salivo por filmes fortemente emocionais, mas não é
necessário entrarmos na parvoíce saloia do “e o Amor triunfará sobre tudo e
todos”. Aquele momento em que uma das mais brilhantes cientistas do mundo
decide ignorar todos os dados científicos de que dispõem, e justificar o
injustificável apenas porque “o Amor é uma coisa linda, verdadeira, e tem que
ser encarada como algo tão racional como a Força da Gravidade”… danifica o
filme. Tornar subitamente uma ode à Humanidade numa espiritualidade de trazer
por casa é manifestamente infeliz. É um daqueles momentos como a pirueta da
mota no The Dark Knight (2008). É uma
carta fora do baralho, que não estraga o filme, mas risca-lhe a pintura.
Há pelo meio
algumas incongruências, como o facto de quando eles partem da Terra “o milho
estar a morrer”, mas 23 anos depois continuam a ter hectares de milho a perder
de vista, ou o facto de Michael Caine com 70 anos ser exactamente igual a
Michael Caine com 93, com o mesmo cabelo, a mesma barba, e até a mesma roupa.
Olhem que eu tenho o privilégio de conhecer algumas pessoas com mais de 90
anos, e quem lhes dera parecer o que eram aos 70.
Mas, enfim, são
coisas mínimas e que não beliscam verdadeiramente o filme. Embora eu questione
seriamente a necessidade omnipresente do “americanismo primário”, com a
bandeirinha espetada no planeta XPTO-423. Portanto, a Humanidade está à beira
da extinção, vamos enviar uma série de astronautas in extremis para outra galáxia nas missões Lazarus, essas pessoas
vão provavelmente morrer abandonadas e sós num planeta alienígena, mas quando lá
chegam os astronautas que se seguem, eis a bandeira americana firme e hirta a
flutuar ao vento. Ainda bem que a missão do desespero final foi pensada tendo
em conta as coisas absolutamente essenciais para a sobrevivência humana.
Resta-nos a
parte final, quando o filme tenta entrar no modo “2001: Uma Odisseia no
Espaço”, e aí é que a porca torce o rabo… Interstellar
bem pode ser entendido como uma homenagem a 2001,
mas está a anos-Luz de qualquer comparação possível. 2001 é um marco cinematográfico, Humano, filosófico, artístico,
criativo. Interstellar é apenas um
filme muito bom. Não confundamos o trigo com o joio. Qualquer discussão sobre
cinema começará sempre com “Para além do 2001:
Uma Odisseia no Espaço, que outros 9 filmes se incluem na lista dos 10 melhores
filmes da História”? A meu ver, Interstellar
não faz parte dessa lista. Visualmente é muito forte, mas não me parece superar
um Gravity ou um Prometheus. Em termos narrativos é muito bom, mas não alcança um Cloud Atlas. Ao nível das interpretações,
não chega sequer a um Inception. É um
filme muito bom, mas a sua excepcionalidade está, curiosamente, apenas na
ligação com a comunidade científica e com a capacidade de ter ajudado a ciência
a representar o que poderá ser o efeito de um buraco negro (link).
Tem um bom argumento, e não lhe falta o toque artístico de ter dado a conhecer
ao mundo o magnífico Do not go gentle
into that good night (link).
Mas, no fim, falta-lhe sempre qualquer coisa para ser “aquela obra
avassaladora”.
Excepto, lá
está, quando se fala de Hans Zimmer. Creio já ter esgotado todas as palavras do
léxico Português para qualificar o génio deste homem. Metade da grandiosidade
do filme deve-se ao esmagador tema tocado no órgão de uma igreja de Londres do
século XII (link).
A música de Interstellar é, essa sim,
uma ode ao génio humano. Já não vale a pena falar sobre Hans Zimmer. Limito-me
a constatar o privilégio que é habitar este planeta no mesmo tempo que este
homem. Tal como foi um privilégio para as pessoas que tomaram conhecimento das
obras de Beethoven em primeira mão. Zimmer é o artista que sucessivamente se
transcende a si próprio. Desde os tempos de Johann Sebastian Bach que ninguém
tocava um órgão desta maneira. É arrepiante, leva-nos às lágrimas com o coração
a estoirar no peito num choque convulsivo que nos asfixia. Deve ser
constrangedor para os restantes compositores contemporâneos limitarem-se a
apanhar as notas que Zimmer deixa cair ao chão. Já só responde perante Wagner
ou Beethoven. Nada mais existe. Quando a música desperta, o filme torna-se
irrelevante, um mero adereço. Zimmer é Gargantua, reduz à insignificância tudo o
que o rodeia. Nem a própria Luz, a própria Física, o próprio Universo se
conseguem impor ante Hans Zimmer.
A própria
música é uma homenagem de Zimmer a “2001: Uma Odisseia no Espaço”. Ouçam o Also Sprach Zarathustra, de Richard
Strauss (que curiosamente ficou conhecida para a posterioridade como a música
do 2001, Uma Odisseia no Espaço), e depois ouçam o Day One Dark. A dimensão epopeica é rigorosamente a mesma.
Julgo nada mais
ter a dizer sobre Interstellar. É um
grande filme, vão ver, vale bem o preço do bilhete. Tem diálogos
verdadeiramente inspiradores, tem “alma própria”, tem arrojo, é a dicotomia
Nolan levada ao extremo. Admito poder estar a ser excessivamente exigente com
Nolan, mas faço-o precisamente por saber que é um dos poucos cineastas a quem
se pode exigir para além do exigível.
Mas tenhamos
noção das coisas, e não classifiquemos tudo e mais alguma coisa como
“obra-prima sem precedentes”. Fazendo uma alusão directa ao filme, Interstellar correspondeu-me às
expectativas em 75%. Com os restantes 25 dou por mim a pensar: daqui por dois
anos é mais provável estar a ver 2001:
Uma Odisseia no Espaço pela 25ª vez, do que Interstellar pela segunda.
Pelo Melhor
Do not go gentle into that good night,
Old age should burn and rave at close of day;
Rage, rage against the dying of the light.
Pelo Pior
Nada há de
verdadeiramente mau neste filme. Há apenas aquela “carta fora do baralho” de,
sem razão aparente, desligar o “modo científico” e tentar introduzir de supetão
“o Amor é a força mai’ linda forever and ever”. Totalmente desprovido de
sentido.
Sem comentários:
Enviar um comentário