quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Jodorowsky’s Dune



Sempre fui grande fã de banda desenhada. E sempre fui grande fã de ficção-científica. Além disso, sempre fui uma pessoa de extremo bom gosto, e indiscutível modéstia. No que à BD diz respeito, sempre preferi a “escola Europeia” aos comics Americanos. Gigantes como Goscinny/Uderzo, Hugo Pratt, Moebius, Enki Bilal, e tantos outros, assim o determinaram. Quanto à FC, tenho uma devoção quasi-religiosa por “Dune”, de Frank Herbert. É, indiscutivelmente, a maior obra de ficção-científica de sempre, e uma das grandes criações literárias de todos os tempos.
Chegados aqui, o que tem o cu a ver com as calças? Descobri há dias que está para ser lançado um grande documentário sobre “o maior filme nunca feito de todos os tempos”. Sim, é estranho. Mas para falarmos deste documentário teremos antes de falar de Alejandro Jodorowsky. Este franco-chileno é um dos maiores génios criativos do surrealismo. O nome é conhecido dos fãs da banda desenhada Europeia graças ao magnífico “O Incal”, obra em seis volumes que Jodorowsky lançou nos anos 80 com a arte do mítico Moebius. É seguramente um dos livros mais complexos de sempre na história da BD. Só pode ser descrito como uma aventura psicadélica, surrealista, de ficção científica, capaz de deixar qualquer leitor embevecido com o que tem nas mãos. É distopia cosmológica banhada em tecno-religião sociológica misturada com a psicomagia que o autor tem por filosofia de vida. Não perceberam patavina do que escrevi? Óptimo, esse é o primeiro passo para abraçar Jodorowsky.
Uma das grandes qualidades deste lunático sempre foi a sua capacidade de reconhecer o talento dos grandes artistas muito antes de boa parte do mundo saber sequer que eles existiam. Jodorowsky estabeleceu parcerias com os monstros sagrados da Nona Arte, para produzir coisas tão fabulosas como a saga “Os Metabarões”, que tem o meu tratamento conceptual de ilustração e coloração preferido de todos os tempos, fruto da genialidade do Argentino Juan Giménez.

E é com isto que chegamos ao título deste artigo: “Jodorowsky’s Dune”. Nos anos 70, este controverso artista (acreditem, eu tenho estado a referir-me apenas às partes criativas socialmente aceites) reuniu um grupo que envolvia alguns dos maiores talentos que o mundo tinha naquele momento com o intuito de criar um épico cinematográfico para fazer uma adaptação do monumental Dune. Foi buscar gente como H. R. Giger, o visionário responsável nessa mesma década pelo inesquecível visual de Alien, para tratar do conceito visual do filme. Para a música, ninguém menos do que Pink Floyd. E quais eram os actores que ele tinha para os principais papéis? Salvador Dalí (sim, esse mesmo), Orson Welles (exacto, também esse mesmo), e Mick Jagger (aqui abstenho-me de comentar).

No entanto, apesar de existirem inúmeros storyboards e inclusive produção de alguns dos fatos e adereços a utilizar no filme, o projecto não seguiu em frente por variadas razões. Mas o mito perdurou, como uma das coisas mais influentes na indústria cinematográfica do século XX. Caso tivesse visto a luz do dia, teria sido uma colossal produção de perto de 14 horas, que provavelmente resultaria num misto de “Ben-Hur”, com o ambiente de “Alien” e o espírito de “A Laranja Mecânica”. Paremos um segundo apenas para juntar na mesma frase os nomes Jodorowsky, Dalí, Giger, e Pink Floyd. Sim, seria um caldeirão de insanidade surrealista que seguramente muito pouco teria a ver com o Dune original, e que em simultâneo teria tudo a ver com o conceito psicotrópico da própria spice melange.
Roubando as palavras do próprio Jodorowsky: Could be fantastic, no?


segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

“A Paisagem Nórdica do Museu do Prado”



Rubens, Brueghel e Lorrain são os “cabeças de cartaz” da exposição que o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) organizou, fruto de uma parceria com o Museu do Prado. 57 pinturas foram trazidas de Madrid para Lisboa, para dar um cheirinho da colecção que o Prado tem de pintura flamenga e holandesa do século XVII. É a primeira vez que Portugal recebe uma colecção de obras do Prado, e quem gosta da escola flamenga já foi certamente a correr deleitar os olhos com as obras expostas.
As paisagens retratadas nas obras são o tema central da exposição, contrastando os ricos bosques de cores naturais com a vivacidade das cores do vestuário das pessoas e animais que por eles passeiam. Sem margem para dúvidas, Rubens é o principal atractivo, figurando na galeria dos pintores mais importantes de todos os tempos. Mas foi Brueghel, O Velho, quem mais me despertou a atenção na visita, pois não o conhecia e fiquei surpreendido pela positiva com boa parte do que vi. É deveras interessante verificar que o quadro que tem servido como “cartaz” da exposição resulta de uma colaboração entre Rubens e Brueghel: A Visão de Santo Huberto.
 PETER PAUL RUBENS e JAN BRUEGHEL, O VELHO
Visão de Santo Huberto
c. 1617-1620
Óleo sobre madeira - 63 x 100 cm
© Madrid, Museu Nacional do Prado
Cenas bucólicas, festas e bodas campestres, paisagens de Inverno, e a sempre presente mitologia Grega, compõem os temas representados nos quadros, onde geralmente a paisagem é retratada numa escala imensa por comparação com as personagens que nela deambulam.
A exposição está bastante interessante, embora me pareça que seja essencialmente indicada para apreciadores deste tipo de pintura. Convém não esquecer que temos no Museu Gulbenkian quadros de Rubens que em nada ficam atrás destes.
Sinto que o MNAA anda com uma dinâmica muito viva nos últimos tempos, o que me apraz, pois já o visitei pelo menos quatro vezes, e não me importo nada de “ter uma nova razão para lá ir outra vez”. “A Paisagem Nórdica do Museu do Prado” é sem dúvida um sucesso, pois o número de visitantes não mente (no dia em que fui estava a abarrotar de gente), e a inteligente campanha publicitária teve seguramente um papel fundamental ao puxar tanta gente. No entanto, fiquei estupefacto ao ler há uns meses que este “acordo de parceria” entre o MNAA e o Prado, que resulta numa troca temporária de obras, vai levar “As Tentações de Santo Antão” para Madrid. Vamos lá a ver se nos entendemos: eu gosto muito de pintura, e gosto muito de Rubens, mas tudo aquilo que (pelo menos até este momento) veio do Prado para cá são “coisas menos importantes” quando comparadas com a nossa “jóia da coroa”. “As Tentações de Santo Antão”, de Bosch, são uma coisa única em toda a História, e merecem estar entre as 50 ou 100 obras fundamentais e irrepetíveis criadas pelo Homem. Paisagens bucólicas, campestres, coisas bonitas do século XVII, e Virgens com o Menino há a pontapés, e para todos os gostos. Nunca percebo estas “parcerias entre Portugal e Espanha”, onde os espanhóis nos mandam uns rebuçados para estarmos entretidos, e os voluntariosos Portugueses vão a correr enviar o bolo de noiva. “As Tentações de Santo Antão” (link) são daquelas coisas que não deviam sair do MNAA por nada deste mundo (excepto se os Italianos enviassem para cá as estátuas de Bernini como moeda de troca – aí, sim, seria admissível). Gosto muito dos protocolos de intercâmbio entre os grandes museus, mas amiguinhos… há limites!
Dito isto, quem estiver interessado é visitar a exposição até dia 30 de Março, e se não gostarem das pinturas, ao menos deleitem-se com os comentários dos “intelectuais” que fazem questão de comentar de forma muy erudita o que estão a ver nos museus. Têm dúvidas? Deixo alguns exemplos…
«Rubens? Com “S”? Não devia ser Ru-BEN? Porquê o “S” no fim?» - aparentemente os curadores dos museus são particularmente criativos e gostam de alterar o nome dos artistas.
«Hummm, estas cores… não sei. Acho que não estão… não sei. Mas… não, este não me convence.» - que chatice, mas quem é que se lembrou de colocar num museu uma obra apreciada por milhares de pessoas há mais de 400 anos sem pedir a douta opinião da Sôdona Etelvina, que não sabe porquê, mas acha que não!
«1443? Então mas se dizem que isto é do século XVII… 1443 é século XV.» - tem toda a razão minha senhora… mas 1443 é o número de inventário do quadro.
«Pois, que conveniente! Pintam as mulheres todas nuas, mas depois metem um trapinho colorido só a tapar a parte que interessa. Enfim… sem comentários!» - calma, jovem, não esquecer que este quadrinho não foi pintado pelo Miró na semana passada… cheira-me que as cortes nos séculos XVI e XVII eram capazes de ficar um pouco melindradas se vissem um quadro de 1m x 1m escarrapachado na parede com uma data de mulheres a mostrar a… “paisagem”!
Em suma, se não apreciarem a pintura, ao menos apreciam os comentários destes génios da cultura que um dia destes estarão a desempenhar a função de comentadores especialistas num qualquer canal de televisão.
Dito isto, aos interessados, é aproveitar até 30 de Março: http://www.pradoemlisboa.pt/pt


Bónus
Ora bem, como a parte deste artigo de que vocês mais gostaram foi certamente a das “pérolas dos comentadores”, aqui fica mais uma para vosso deleite.
Junto à Custódia de Belém, uma das obras de arte essenciais do nosso património, estão duas simpáticas velhotas.
«Aquelas 12 figuras na parte de cima, ouvi dizer, são os 12 apóstolos. Mas, também já me disseram que não são…»
«Pois, eu ouvi dizer que 11 deles eram os apóstolos, mas que depois havia um que não era…»
Tem toda a razão, Dona Laura! Venha daí uma Tese de Doutoramento. Até já estou a imaginar a dissertação: Gil Vicente, ao qual se atribui a criação da Custódia de Belém, não gostava de um apóstolo em particular, e portanto pensou: olha, como não gosto daquele gajo, vou colocar aqui os outros 11, e depois para preencher o espaço em branco… meto o Zé da Coelha, que é meu compadre!