quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Estes Últimos 4 Meses em Portugal



Imaginemos que eu era um estudante de Erasmus e que tinha vindo a Portugal para fazer um estágio. Logo à chegada a Lisboa, nos primeiros dias de Agosto, fico a saber que um banco desapareceu durante um fim-de-semana.
Pelos vistos, por agravada trafulhice, isto leva a uma série de consequências, entre as quais a insolvência de várias empresas espalhadas por esse mundo fora. Ao que tudo indica, o tal banco estava cheio de buracos, apesar de dias antes o Governo, o Presidente da República, e o Governador do Banco de Portugal assegurarem a toda a gente que podiam investir à vontade no banco, porque este era inteiramente sólido.
Não bastando o referido, a 2ª ou 3ª maior empresa do país leva um tiro no porta-aviões porque aparentemente decidiu emprestar 900 milhões de Euros ao dito banco, sem ninguém perceber exactamente porquê.
Dias depois, tomo conhecimento que há uma tempestade qualquer na Justiça, pois os tribunais “mudaram de sítio”, e uma coisa chamada Citius impede o acesso a uma catrefada de processos judiciais durante uma data de tempo.
A ministra diz que houve sabotagem.
O Ministério Público diz que não houve.
Em simultâneo, dá-se a abertura do ano lectivo. Mas afinal não se dá, porque os professores parece que não foram colocados. Ah, afinal já foram colocados. Não, pelos vistos foram agora descolocados. Esperem, agora foram colocados cem vezes em sítios diferentes.
O ministro explica. É tudo uma questão gramatical: “Mantêm-se é diferente de manter-se-ão!”
Passou-se um mês, e ainda não há aulas. Acho tudo isto absurdo, mas pode ser que os nativos estejam habituados e achem isto normal.
Decido dar um salto até à Assembleia da República. Vejo um ministro a fazer figuUUUUUURA de paAAAAARVO, e um secretário de estado quase à estalada com um deputado em acesa disputa por – imagine-se! – um microfone. Parece haver uma espécie de “inconseguimento” nesta gente eleita por este povo.
Ainda meio atordoado, fico a saber que há suspeitas de corrupção ao mais alto nível, à conta de uns tais “visto gold”, que envolvem presidentes de institutos, directores da polícia, secretarias de estado, arrasta onze pessoas aparentemente de elevada importância em instituições públicas para a prisão, e provoca a queda de um dos três ministros mais importantes do governo. Pelo meio, o vice-primeiro-ministro faz publicidade à REMAX.
Já completamente sem saber para que lado me virar, eis senão quando um ex-primeiro-ministro é detido à saída do avião, tendo as televisões cá fora a filmar a saída do aeroporto. Passam três dias de total estupefacção, com carros da polícia a entrar e a sair de garagens como se o mundo estivesse a acabar, enquanto alguns tipos agitam bandeiras do PNR. O Campus da Justiça tem a interessante particularidade de permitir às câmaras de televisão filmar os interrogatórios a partir do exterior, o que é algo deveras suis generis.
Passados três dias com uma guerra civil quase a irromper no país, é decretada a prisão preventiva do ex-primeiro-ministro, estando anunciada a comunicação para as seis da tarde, que depois passa para as sete, esperem, afinal é às oito, olha está atrasada, talvez lá pelas dez e meia…
Pego nos jornais do dia seguinte para tentar perceber o que se está a passar, mas as notícias em destaque o que me dizem é que o ex-primeiro-ministro está detido na aula feminina da prisão, e que almoçou cozido à Portuguesa, tendo pedido livros de Filosofia em francês à ex-mulher.

Espera-se a qualquer momento que a Teresa Guilherme pare de dirigir este reality show em que este país mergulhou nos últimos quatro meses.

E agora, que estou prestes a terminar o meu estágio, e a voltar ao meu país de origem, apresento-vos o título da minha tese: Ainda acham estranho que os únicos que metem dinheiro neste país sejam chineses, angolanos e russos?

NOTA: Este trata-se, OBVIAMENTE, de um trabalho ficcional. Qualquer semelhança com a realidade é, OBVIAMENTE, pura coincidência.



segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Interstellar


Cada vez que Christopher Nolan anuncia o lançamento do seu próximo filme o mundo parece ficar, momentaneamente, em suspenso. Não é para menos, Nolan é o génio cinematográfico que nos anos mais recentes nos fez chegar filmes memoráveis como The Dark Knight (2008) e Inception. Portanto, é normal que o mundo pare, escute, e olhe.
Eu estava de relações cortadas com Nolan desde 2012, por causa do inenarrável The Dark Knight Rises, e portanto este Interstellar apresentava-se como o filme em que ele tinha que se superar, e fazer-me esquecer aquele trágico acidente ferroviário.
Antes de começar a falar de Interstellar é necessário deixar bem claro que sempre que escrevo alguma coisa neste blogue faço-o de acordo com a minha opinião que procuro sustentar da forma mais objectiva possível, nunca me deixando seduzir pela “onda colectiva”. E é por isso que a “onda colectiva” bem pode continuar a berrar que o famigerado filme de 2012 supramencionado é o best movie ever, que eu continuarei a chamar-lhe um belo pedaço de caca wookie.
Mas, para permitir desde já desanuviar o ar, e uma vez que já sofri ameaças à minha integridade física (feitas com piratas-ninja-wizards, entre outras) para a eventualidade de dizer menos bem do filme, começo já por dizer: Interstellar é um GRANDE filme! Pronto, respirem fundo. Está dito. Mas – há sempre um “mas”, e o diabo está nos detalhes – não subscrevo de forma alguma que este seja um dos melhores filmes de todos os tempos, uma obra-prima absoluta, e mais o sem-fim de qualificações que a “onda colectiva” quer fazer passar como verdade indiscutível a todo o custo.
Todos os filmes do brilhante Nolan têm um ponto em comum: são emocionalmente fortíssimos, e fazem-nos pensar para lá das linhas de orientação. E conseguem esta proeza no meio de um espectáculo visual e tecnológico que deixa qualquer espectador embevecido. E Interstellar é precisamente isso, um colosso emocional que nos põe durante mais de duas horas e meia a pensar numa série de coisas. E é precisamente neste ponto que eu começo a divergir da “onda colectiva”. Todas as opiniões que por aí grassam dão a entender que a primeira parte do filme – aquela que se passa na Terra, maioritariamente na quinta de Cooper – é uma seca, e que o filme fica fabuloso a partir do momento em que entram no Espaço. Discordo, em grau superlativo absoluto sintético. Toda a primeira parte do filme é o que me prende a atenção. É onde está a história, a emoção, a força e a fraqueza humanas. E boa parte deve-se a uma personagem a quem a “onda colectiva” nem prestou qualquer atenção: o avô, interpretado por John Lithgow.
Nolan tem por hábito abordar nas suas obras temas muito actuais. A praga que parece ser responsável pela devastação das colheitas no planeta é uma referência subtil às alterações climáticas. Mas até nem é a mais importante. Há diálogos que passam despercebidos, e que são maravilhosos. Quando o avô refere que no seu tempo éramos “6 biliões de pessoas, todas a quererem ter direito à mais recente engenhoca que surgia todos os anos”, é uma crítica directa ao nosso consumismo acéfalo e estúpido. Não adianta olhar para o lado. Somos todos igualmente culpados. A forma como o avô “repreende” o genro, quando este parece não querer dar tanta atenção aos filhos como a que é necessária, e a fabulosa deixa “it’s a parents-teachers meeting, not grandparents”. Até mesmo o momento humorístico “I want a hotdog!”. Lithgow é marcante, e um dos actores mais subavaliados de Hollywood. Tudo junto, está menos de cinco minutos em cena, e é para mim a personagem mais memorável.
A cena com mais significado do filme é a reunião de Cooper na escola. O debate entre ensino e ciência versus estupidez é arrebatador.
Ainda na “primeira parte de seca”, temos a extraordinária relação entre pai e filha, com Mathew McConaughey e a jovem Mackenzie Foy a terem ambos prestações – essas sim! – para lá das estrelas. Raras vezes um duo pai-filha foi tão convincente no ecrã. Que lição de actuação! Que delícia… É pena que dure tão pouco tempo, porque depois disto parece não haver actores no resto do filme. Anne Hataway, Michael Caine, Jessica Chastain, e todos os restantes, parecem eclipsar-se durante duas horas. O próprio McConaughey, quando afastado dos filhos, apaga-se um pouco. Há apenas uma breve excepção, graças à personagem de Matt Damon, que embora do ponto de vista de interpretação seja “Matt Damon a fazer de Matt Damon”, em termos de dimensão e interesse da personagem é algo que abana um bocado a história.
E com isto entramos na escala épica do filme. Com a ambição desmesurada de ser uma história avassaladora que nos faz olhar para a Humanidade e para o Universo. É aqui que eu acho que o filme não cumpre a 100%, e que me fez sair da sala de cinema a dizer “foi bom, mas faltou aqui qualquer coisa”.
O duelo entre ciência e emoção é muitas vezes o que nos põe a salivar durante o filme. Mas há alturas em que fica a sensação que se entrou um modo “vamos pegar na Teoria da Relatividade de Einstein e martelar aqui qualquer coisa”. Do ponto de vista científico, ao que tudo indica o filme é bastante bem sustentado, tendo sido inclusivamente desenvolvido tendo como consultor um dos grandes Físicos teóricos da actualidade (e não estou a falar do Sheldon Cooper). E é precisamente essa razão que me faz ficar ainda mais desagradado quando, sem mais nem menos, querem aludir ao Amor como uma espécie de variável física para integrar numa equação. Juntar a Lei da Gravidade e o Amor como X+Y = Z é uma parolice tremenda. Eu até salivo por filmes fortemente emocionais, mas não é necessário entrarmos na parvoíce saloia do “e o Amor triunfará sobre tudo e todos”. Aquele momento em que uma das mais brilhantes cientistas do mundo decide ignorar todos os dados científicos de que dispõem, e justificar o injustificável apenas porque “o Amor é uma coisa linda, verdadeira, e tem que ser encarada como algo tão racional como a Força da Gravidade”… danifica o filme. Tornar subitamente uma ode à Humanidade numa espiritualidade de trazer por casa é manifestamente infeliz. É um daqueles momentos como a pirueta da mota no The Dark Knight (2008). É uma carta fora do baralho, que não estraga o filme, mas risca-lhe a pintura.
Há pelo meio algumas incongruências, como o facto de quando eles partem da Terra “o milho estar a morrer”, mas 23 anos depois continuam a ter hectares de milho a perder de vista, ou o facto de Michael Caine com 70 anos ser exactamente igual a Michael Caine com 93, com o mesmo cabelo, a mesma barba, e até a mesma roupa. Olhem que eu tenho o privilégio de conhecer algumas pessoas com mais de 90 anos, e quem lhes dera parecer o que eram aos 70.
Mas, enfim, são coisas mínimas e que não beliscam verdadeiramente o filme. Embora eu questione seriamente a necessidade omnipresente do “americanismo primário”, com a bandeirinha espetada no planeta XPTO-423. Portanto, a Humanidade está à beira da extinção, vamos enviar uma série de astronautas in extremis para outra galáxia nas missões Lazarus, essas pessoas vão provavelmente morrer abandonadas e sós num planeta alienígena, mas quando lá chegam os astronautas que se seguem, eis a bandeira americana firme e hirta a flutuar ao vento. Ainda bem que a missão do desespero final foi pensada tendo em conta as coisas absolutamente essenciais para a sobrevivência humana.
Resta-nos a parte final, quando o filme tenta entrar no modo “2001: Uma Odisseia no Espaço”, e aí é que a porca torce o rabo… Interstellar bem pode ser entendido como uma homenagem a 2001, mas está a anos-Luz de qualquer comparação possível. 2001 é um marco cinematográfico, Humano, filosófico, artístico, criativo. Interstellar é apenas um filme muito bom. Não confundamos o trigo com o joio. Qualquer discussão sobre cinema começará sempre com “Para além do 2001: Uma Odisseia no Espaço, que outros 9 filmes se incluem na lista dos 10 melhores filmes da História”? A meu ver, Interstellar não faz parte dessa lista. Visualmente é muito forte, mas não me parece superar um Gravity ou um Prometheus. Em termos narrativos é muito bom, mas não alcança um Cloud Atlas. Ao nível das interpretações, não chega sequer a um Inception. É um filme muito bom, mas a sua excepcionalidade está, curiosamente, apenas na ligação com a comunidade científica e com a capacidade de ter ajudado a ciência a representar o que poderá ser o efeito de um buraco negro (link). Tem um bom argumento, e não lhe falta o toque artístico de ter dado a conhecer ao mundo o magnífico Do not go gentle into that good night (link). Mas, no fim, falta-lhe sempre qualquer coisa para ser “aquela obra avassaladora”.
Excepto, lá está, quando se fala de Hans Zimmer. Creio já ter esgotado todas as palavras do léxico Português para qualificar o génio deste homem. Metade da grandiosidade do filme deve-se ao esmagador tema tocado no órgão de uma igreja de Londres do século XII (link). A música de Interstellar é, essa sim, uma ode ao génio humano. Já não vale a pena falar sobre Hans Zimmer. Limito-me a constatar o privilégio que é habitar este planeta no mesmo tempo que este homem. Tal como foi um privilégio para as pessoas que tomaram conhecimento das obras de Beethoven em primeira mão. Zimmer é o artista que sucessivamente se transcende a si próprio. Desde os tempos de Johann Sebastian Bach que ninguém tocava um órgão desta maneira. É arrepiante, leva-nos às lágrimas com o coração a estoirar no peito num choque convulsivo que nos asfixia. Deve ser constrangedor para os restantes compositores contemporâneos limitarem-se a apanhar as notas que Zimmer deixa cair ao chão. Já só responde perante Wagner ou Beethoven. Nada mais existe. Quando a música desperta, o filme torna-se irrelevante, um mero adereço. Zimmer é Gargantua, reduz à insignificância tudo o que o rodeia. Nem a própria Luz, a própria Física, o próprio Universo se conseguem impor ante Hans Zimmer.
A própria música é uma homenagem de Zimmer a “2001: Uma Odisseia no Espaço”. Ouçam o Also Sprach Zarathustra, de Richard Strauss (que curiosamente ficou conhecida para a posterioridade como a música do 2001, Uma Odisseia no Espaço), e depois ouçam o Day One Dark. A dimensão epopeica é rigorosamente a mesma.
Julgo nada mais ter a dizer sobre Interstellar. É um grande filme, vão ver, vale bem o preço do bilhete. Tem diálogos verdadeiramente inspiradores, tem “alma própria”, tem arrojo, é a dicotomia Nolan levada ao extremo. Admito poder estar a ser excessivamente exigente com Nolan, mas faço-o precisamente por saber que é um dos poucos cineastas a quem se pode exigir para além do exigível.
Mas tenhamos noção das coisas, e não classifiquemos tudo e mais alguma coisa como “obra-prima sem precedentes”. Fazendo uma alusão directa ao filme, Interstellar correspondeu-me às expectativas em 75%. Com os restantes 25 dou por mim a pensar: daqui por dois anos é mais provável estar a ver 2001: Uma Odisseia no Espaço pela 25ª vez, do que Interstellar pela segunda.

Pelo Melhor

Do not go gentle into that good night,
Old age should burn and rave at close of day;
Rage, rage against the dying of the light.

Pelo Pior
Nada há de verdadeiramente mau neste filme. Há apenas aquela “carta fora do baralho” de, sem razão aparente, desligar o “modo científico” e tentar introduzir de supetão “o Amor é a força mai’ linda forever and ever”. Totalmente desprovido de sentido.