segunda-feira, 10 de março de 2014

“Espártaco – A Revolta dos Escravos”, de Max Gallo




Espártaco deixou-se cair, procurando encostar-se a uma árvore. Objectou que pertencia a uma família que nunca se submetera, que só venerava os deuses da felicidade, da força e da liberdade. Ninguém, nem os Persas, nem os Dácios, nem os Romanos, tinham conseguido reduzi-los à escravatura. Fora este desejo de ser tão livre quanto um lobo que o levara a fugir do acampamento dos auxiliares. Não recusara ser humilhado pelo centurião Nómio Cástrico ou pelo tribuno Calvício Sabínio para se submeter a deuses ainda mais exigentes, também eles desejosos de acorrentar os homens.
- Livre ou morto! – declarou Espártaco.

Era uma vez um vampiro chamado Edward, que se apaixonou por uma rapariga chamada Bela. Viveram uma linda história de amor, até que um dia um lobisomem seminu os matou a todos. The End. E o mundo rejubilou.
Não, meus caros, eu não perdi o juízo de vez. Passo a explicar a razão desta estranha introdução. Espártaco - A Revolta dos Escravos foi-me oferecido no dia dos meus anos por duas pérfidas criaturas que colocaram no livro uma capa destacável do Twilight. Imaginem, portanto, o ar de choque do Prodigioso Psy ao abrir uma prenda, e a ficar naquela situação em que quer atirar “a coisa” pela janela, mas ao mesmo tempo quer manter a compostura, a boa educação, e seguir a tradição de agradecer qualquer prenda que nos seja dada, mesmo que seja um cocó ressequido. Mesmo que seja o Twilight. Um dia, por este acto atroz, estas pérfidas criaturas serão levadas na barquinha do Caronte, ao longo do Rio Styx, e terão que prestar contas pela sua vilania, juntamente com Judas, Brutus, e outros traidores inomináveis.
Mas falemos então de Espártaco, que com o reluzente Edward tem em comum apenas a primeira letra do nome. Este foi o primeiro livro que li de Max Gallo, autor sobejamente reconhecida pela sua obra de ficção histórica. Como é do conhecimento geral (ou pelo menos espero que seja…), este é um estilo do qual sou particularmente entusiasta, e tratando-se de algo associado à História de Roma, não podia haver melhor conjugação de constelações para me deixar a salivar.
Pois nunca até hoje detestei tanto um livro quando o comecei a ler! Exacto. Assim mesmo. Os primeiros capítulos foram uma tortura. Mas como é que este gajo é um escritor tão famoso? Mal descreve as personagens! Espártaco é um trácio, e faz-se acompanhar por uma sacerdotisa de Dioniso chamada Apolónia, e por Jair, um judeu. E pronto, é só isto. Andam por aqui, andam por ali, e não passa disto. Mas que raio… Querem ver que ainda largo isto e acabo por ir ler o Twilight? Não há enquadramento na acção, a história salta para trás e para a frente sem qualquer fio condutor, as personagens têm apenas direito a nome próprio, e pouco mais… Pois é, Max Gallo não é propriamente um escritor entusiasmante quando se começa a ler. O facto de ser professor de História pode ser parte da explicação. As personagens (pelo menos neste livro) não são o eixo central da acção. Mas quando o leitor começa a perceber que a personagem principal é a história em si… a coisa muda de figura. A atenção ao detalhe é notável, e a acuidade histórica salta à vista.
Num primeiro embate, as personagens são mesmo aborrecidas. Espártaco é apenas um trácio, um pouco grunho, que repete ad nauseum “eu quero ser livre, eu quero ser livre, eu recuso-me a ser escravo”. A única personagem feminina do livro todo é Apolónia, a sacerdotisa de Dioniso, que basicamente é uma boneca insuflável com pernas. Página sim, página não, a moça lá arranja maneira de estar envolvida em “qualquer coisa sexual”.

Espártaco diz aos soldados que vão seguir em frente. Apolónia agarra-lhe no pénis e fazem sexo. As oliveiras ao longo da estrada estavam sem azeitonas. Apolónia mordisca os mamilos de Espártaco e fazem sexo. O antigo gladiador reúne-se com os seus companheiros, para combinarem um plano de ataque contra os Romanos, e, enquanto isso, Apolónia dá uma cambalhota por baixo dele, abre as pernas, e fornicam que nem coelhos. Depois da batalha, Espártaco está cansado. Encosta-se a uma pedra para fazer a sesta. Apolónia agarra-lhe no pénis e fazem sexo. A meio do caminho, Espártaco tropeça numa pedra. Apolónia está deitada no meio do chão de pernas abertas… e fazem sexo!

Eu não sou propriamente um gajo púdico, e percebo que uma sacerdotisa de Dioniso seja tão “entusiasmada” como o coelhinho da Duracell na noite de núpcias, mas tratando-se da única mulher que aparece na história… Caneco! Seria de esperar que as leitoras do Sr. Gallo lhe tivessem um ódio cego pela forma como retrata as mulheres, mas o mais giro é que em 1975 foi galardoado com o Prémio das Leitoras da revista Elle!
Ok, acho que me vou cingir a comentar o livro em si. Passado o incómodo inicial, a obra começa verdadeiramente a revelar-se. Alguns dos diálogos são de uma simplicidade magnífica, em particular aqueles que Espártaco mantém com Jair, o curandeiro judeu.
«O que significa ser livre num mundo todo ele subjugado?»
A descrição de todo o ambiente – a tal personagem principal do livro – em torno das escolas de gladiadores é de gelar o sangue. Temos aquela visão romântica dos combates de gladiadores que nos foi “vendida” pelo cinema ao longo das últimas décadas, mas Max Gallo faz questão de descrever pesadamente o que seria o dia-a-dia daquela gente cuja vida de nada valia, e que servia meramente como carne para canhão. Há uma crueldade lancinante em algumas descrições que nos roubam todo o brilho de Hollywood.
E a história vai-se desenvolvendo, e Espártaco vai reunindo o seu exército de escravos que faz frente à todo-poderosa Roma. Espero que ninguém esteja assustado com a possibilidade de eu fazer spoilers. É que não estou propriamente a falar do Harry Potter, e tudo isto passou-se em 71 AC. Portanto, espero que por esta altura do campeonato toda a gente saiba que isto não vai acabar bem… Continuando, o peso da revolta que vamos acompanhando começa a ser evidente. Não se desafia Roma. Espártaco começa a ter os problemas de liderar um exército de escravos revoltosos (e é aqui que o toque de professor de História de Max Gallo faz brilhar o livro). Há, ao longo do livro, passagens introspectivas que causam grande impacte quando lidas no momento certo, a partir do momento em que começamos a sentir empatia com as personagens.
«Foi nesse momento que Espártaco se sentiu cansado e lhe ocorreu que comandar homens também era uma escravatura. Que um homem talvez só fosse livre quando caminha sozinho pela floresta, debaixo do céu da sua infância.»
Ok, chamem-me mariquinhas, mas ler estas coisas num livro que tenho nas mãos causa-me arrepios no corpo. E é por isso que a Literatura será sempre a mais nobre de todas as Artes, em especial quando se toca a genialidade com palavras tão simples.
E a carga emotiva da história continua, à medida que nos apercebemos que se aproxima “aquele momento”. Todos conhecemos o mapa de Itália, e sabemos que um exército de milhares de escravos não tem para onde fugir. A perseguição das legiões de Roma é lenta, mas inexorável. O resultado final adivinha-se facilmente. Deverão ter sido semanas terríveis, aquelas vividas no Sul da Itália perante “the might of Rome”. Aquele nome de colosso que tudo esmaga no seu caminho. E a história intensifica-se. Queremos mudá-la. Não queremos que acabe assim. Não queremos que Crasso e Pompeu tenham sucesso. Mas Espártaco sabe que o vão ter. Que já não há mais para onde fugir.
«Espártaco abraçou Apolónia, depois estreitou-nos um a um contra o peito. – Que a minha vida, a nossa revolta façam parte de um livro, como aconteceu à vida do povo judeu e à do povo grego.»
Vários livros, um filme, uma série de televisão, e inúmeras outras coisas. A história de Espártaco é daquelas que nunca morrerão. O final do livro é sufocante, sempre em crescendo, num ritmo agonizante, palpitante, avassalador. Como é que um livro que começa tão merdosamente termina neste nível? Socorro, mãezinha, manda os homens maus embora. Ajuda os revoltosos a fugir, ajuda-os a escapar, não os deixes ser apanhados.
Suspiro.
Não há muitos livros assim.
Mentira, felizmente há!
E é tão bom um livro fazer-nos sentir assim. Aquele desespero, o sufoco de ver as peças a moverem-se no tabuleiro, e nós, impávidos leitores, incapazes de alterar a história.
E pronto, pela quantidade de citações que aqui coloquei julgo que deu para perceber que devo ter gostado do livro. Falando de citações, deixo aqui mais uma, apenas pelo interesse da ligação histórica à Grã Pátria Lusa.
«Teria de prevenir o Senado dos perigos que ameaçavam Roma e, portanto, a república. As legiões de Pompeu, que tinham vencido em Espanha os exércitos rebeldes de Sertório, e que estavam de regresso, teriam de se empenhar na perseguição de Espártaco.»
Como recomendação final, para quem gosta de História, procurem saber o que Crasso fez aos escravos revoltosos após a morte de Espártaco. E quando souberem, vejam qual é a distância entre Roma e Cápua…

P.S. O segundo livro da colecção tem por título “Nero – O Reinado do Anticristo”.
P.P.S. Sim. É óbvio que sim…

Espártaco – A Revolta dos Escravos, Max Gallo, Edições ASA, 2007


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