terça-feira, 24 de janeiro de 2012

“O Segredo de Afonso III”, de Maria Antonieta Costa

- Vou então começar pela minha vinda para o Paço Real de Enxobregas. Sou descendente, por via paterna, do califado dos abássidas. Quando Afonso III conquistou todo o Algarve, Aloandro Bem Bekar, que governava o Castelo de Faro e de quem sou filha, submeteu-se ao seu poder e, para provar que estava de boa-fé, ofereceu-me ao rei, que me trouxe para a Corte. Contava quinze anos quando isso aconteceu e fiquei privada dos mimos da minha mãe, que nunca mais vi.



Na última década o género da ficção histórica ganhou uma expressividade que não pode ser menosprezada. É uma fórmula de sucesso, pois brinca com o nosso imaginário, e leva-nos a olhar para as nossas referências históricas e pensar nos vários “ses”.

Intelectual brilhante como sou, já li diversos livros do género, e quando deparei numa livraria com uma obra de uma autora Portuguesa, a ficcionar em redor de um mistério na corte do quinto Rei da minha Pátria, pensei “porque não”?

O Segredo de Afonso III é talvez o livro mais difícil sobre o qual opinar que já me passou pelas mãos. Adoro-o ao mesmo tempo que o detesto. Vamos lá por partes… A história passa-se em dois momentos: Lisboa, ano 1279, e Roma, na actualidade. Ou seja, as duas cidades mais importantes da História da Humanidade. A arquitectura do livro está organizada de forma a os capítulos irem alternando entre si, e portanto decorrendo em simultâneo nas duas épocas. A fórmula é bem conseguida, e Maria Antonieta Costa consegue fazer uma coisa extraordinária que é “escrever de forma diferente em cada uma das épocas”. É difícil explicar isto aqui, mas digamos que a escolha de palavras e a narração na primeira pessoa vs narração na terceira pessoa é uma forma muito inteligente de permitir distinguir na perfeição o momento em que estamos em cada capítulo. E é aqui que começa a controvérsia, porque parece que o livro foi escrito não por uma, mas por duas pessoas diferentes. Toda a narrativa que decorre no século XIII é brilhante, numa escrita estupenda, com a utilização de vocabulário muito cuidado e apropriado (a autora é formada em História e Cultura Medieval), com frases em latim, e uma quantidade considerável de designações adequadas à época. Por oposição, toda a narrativa que decorre na actualidade é um desastre absoluto, com personagens sem qualquer interesse, cheias de clichés, e – devo acrescentar – de uma mediocridade confrangedora.

Este livro é também uma tentativa de escrever o “Código Da Vinci” Português, pois está envolto em mistérios e enigmas históricos que nos dias actuais vão sendo desvendados pelas personagens nossas contemporâneas. Mas a autora, que se nota estar perfeitamente à vontade na parte que diz respeito à História, é de fugir a sete pés no que concerne ao “romance moderno”. São capítulos inteiros dignos de uma Margarida Rebelo Pinto. Para os mais distraídos, acabei de ofender a autora até à quadragésima geração… A pimbalhice pseudo-romântica que polui toda a acção que se desenrola em Roma é de cortar os pulsos com uma colher de pau romba!

A personagem central é Eunice Bacelar, uma historiadora que decide pesquisar nos arquivos do Vaticano para escrever uma obra sobre o nepotismo dentro da Igreja Católica. É nesse processo que descobre um pergaminho que conta a história de Madragana, uma barregã moura de D. Afonso III. Ora, como 99% dos meus caros amigos que estão a ler isto não fazem a mais pequena ideia do que significa barregã, tal como eu não fazia, desatem todos a correr até ao dicionário mais próximo. Se este livro não tiver servido para mais nada, ao menos já me ensinou uma palavra nova para insultar de forma intelectual as pessoazinhas que me chateiam.

O livro oscila entre momentos de grande inspiração, em particular com um enfoque muito grande na parte da alquimia, e que me levou durante muitos capítulos a pensar que ia sair daqui uma coisa diferente e interessante, e momentos de pasmaceira total e absoluta, caindo no ridículo das conspirações clichés e de um absurdo tão grande que as histórias do Tom & Jerry parecem mais verosímeis.

Quanto ao cerne do livro, o tal “segredo do Rei”, é uma desilusão tremenda, perfeitamente banal, e meramente fruto do mediatismo cor-de-rosa contemporâneo. Não vou “revelar” qual o segredo, por respeito a quem eventualmente o ler, mas qualquer pessoa com um QI minimamente aceitável já deve ter ficado com uma boa ideia do que se trata.

E é isto a bipolaridade que me provocou a leitura do livro. Por um lado os rasgos de espectacularidade em redor do ambiente medieval, perfeitamente caracterizado, interessante, exaustivo, e sedutor, por outro lado a total banalidade sem qualquer interesse que tenta encostar a história moderna a um Dan-Brown-meets-Margarita-Rebelo-Littlechicken-and-fails-utterly. O meu conselho: quem pegar no livro arranque todos os capítulos passados na “actualidade” e leia a parte baseada na História.

Sendo um primeiro romance da autora, é de elogiar um bom trabalho na parte “ficção histórica”, e estou certo que se ela escrever mais livros focados unicamente neste aspecto terá em mim um fiel leitor. Se optar pela veia Margarítica, usarei os meus dotes alquímicos para lhe despejar H2SO4 pela garganta abaixo.

Como nota final, é de referir que a autora colocou no final do livro um quadro onde faz o contraste entre o que é “baseado em factos reais” e o que resulta da imaginação da autora. É uma forma interessante de acabar o livro, na minha opinião.

Para terminar, e para “something completely different”, depois de ler o livro fiquei com curiosidade de pesquisar um pouco mais por El-Rei “O Bolonhês” (ainda se lembram das aulas da 4ª classe?). Descobri algo fascinante graças à Wikipedia. A Biblioteca Nacional de Portugal disponibiliza versões digitais no seu site de alguns documentos históricos. Foi aí que descobri a “Chronica do muito alto e muito esclarecido principe D. Afonso III, quinto rey de Portugal” da autoria de Rui de Pina. Trata-se de um documento do século XV, copiado no século XVIII nesta versão disponibilizada online. Pode para muitos parecer algo sem grande interesse, mas para um apaixonado por História, isto é algo de me levar às lágrimas. Obrigado Biblioteca Nacional de Portugal.




Segundo a lenda cristã, os segredos da natureza tinham sido divulgados por anjos que se haviam apaixonado por mulheres terrenas. Estas terão sido as primeiras feiticeiras e bruxas, com longos cabelos soltos e em desordem, assim como Medeia ou como Canídia que, ainda por cima, os adornava com pequenas serpentes. A alquimia era, antes de mais, apresentada como um sistema de autotransformação em que a transmutação ocorria livre na natureza, intrigando os pesquisadores.


O Segredo de Afonso III, Maria Antonieta Costa, Clube do Autor, 2011

4 comentários:

  1. Fiquei esclarecido quer sobre as grandes capacidades da autora para a biografia histórica quer sobre a Crónica de Rui de Pina exposta pela BN.

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  2. Caro Santos Veloso,

    Muito obrigado pelo seu comentário. Reparei há dias que saiu recentemente um novo livro da autora, centrado na figura de Luís de Camões: "A Epopeia do Eterno Navegador". Será, porventura, uma leitura interessante.

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  3. Depois de ler o livro, tentei procurar opiniões sobre ele. E a sua é a mais próxima que encontrei da minha. Apenas ao ler o seu post percebi que o que me tinha verdadeiramente desagradado no livro não foi tanto a escrita da autora, mas talvez os "clichés à MRP" que refere.

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  4. Caro Samuel Tomé,

    Muito obrigado. Confesso que cada vez que volto a este artigo fico com um peso na consciência. É de longe um dos que mais atenção tem atraído neste blogue, e sinto que em parte do que escrevi fui bastante cruel com a autora. Creio que a única forma que tenho de me redimir é lendo um dos livros seguintes. Mas, se de facto voltar a cair no estilo MRP... "cruel" será o mais simpático dos adjectivos! :)

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