quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

“Kanikosen – O Navio dos Homens”, de Takiji Kobayashi


O patrão estava furioso. Ia e vinha sem parar do compartimento dos pescadores enquanto eles o seguiam em silêncio, os olhos cheios de ódio como se o fossem matar.
No dia seguinte, decidiu-se que o barco iria prosseguir na sua rota, em parte para apanhar mais caranguejos e em parte para procurar os botes desaparecidos. «Perder cinco ou seis homens não tem qualquer importância, mas seria uma pena perder os botes.»

Há livros que provavelmente nunca leriamos na vida se não nos fossem oferecidos. É bem provável que isso me acontecesse com “Kanikosen – O Navio dos Homens”. Acrescento que tal seria uma pena.
A história narrada no livro é bastante simples e interessante, mas muito mais importante é a História (assim mesmo, com “h” grande) do próprio livro. Kanikosen foi escrito na clandestinidade no Japão em 1929 (dez anos antes do início da Segunda Guerra Mundial, que alterou por completo o rumo do país.
Mas comecemos pela história que o livro conta. É bastante pequena e foca-se num grupo de homens que trabalha num barco-fábrica de pesca de caranguejo em alto mar. O que chama a atenção no livro é perceber as condições desumanas em que os homens trabalham. Isto não se trata de mera ficção. Nos dias de hoje poucos de nós conseguiremos percepcionar o que foram os abusos sofridos pelos trabalhadores no início do século XX. Os operários do navio passam frio, trabalham horas a fio, dias seguidos, em alto mar, padecem de doenças, e são espancados brutalmente pelo patrão quando este acha que eles estão a “mandriar”. A curta história desenrola-se calmamente, atentando nos desejos dos homens, na saudade das famílias, e na tortura que é viver aquela situação. “- Vamos até ao Inferno.”, é a frase que abre o livro. Doentes, cansados, famintos, assim passam até ao momento em que compreendem que é chegada a hora de lutar pelos seus direitos. Não será necessário ser grande entendido em História para ter a noção do efeito que esta “propaganda vermelha” teve num país fechado como o Japão imperial do início do século XX.
Passemos então à História do livro. O seu autor, Takiji Kobayashi, tinha 26 anos quando o escreveu. Desde então, foi alvo de perseguições e discriminação, até que em 1933 foi capturado pela Polícia Secreta, espancado brutalmente, e acabando por morrer. Tinha 30 anos.
É difícil nos dias de hoje ter sensibilidade suficiente para perceber o quanto algumas pessoas sacrificaram para lutar pelos direitos de dignidade mínima, e para combater as injustiças sociais. Felizmente o século XX fez-nos avançar muito.
Mas eis-nos chegados ao século XXI, quando as condições laborais começam a dar sinais fortes de degradação, quando algumas pessoas sentem que são exploradas para que alguns patrões (como os do livro) enriqueçam. O livro, passados 80 anos da sua publicação, torna a conquistar um lugar central na atenção de vários públicos, tornando-se um bestseller inesperado em vários países. Ajuda-nos a perceber algo que muitas vezes esquecemos: certas coisas na vida são cíclicas, e convém estarmos atentos ao mundo que nos rodeia para não cometermos os mesmos erros.
A título de curiosidade, o nome do navio onde decorre a história é Hakko Maru. Se juntarmos a isto parte do nome do autor, obtemos “Kobayashi Maru”, algo que não será estranho aos fãs de Star Trek. Coincidência? Não creio. O Kobayashi Maru era o teste que a Starfleet impunha aos seus cadetes e que era impossível de vencer, uma “no win situation”, as o qual o Capitão Kirk conseguiu ultrapassar de forma inesperada.
A escrita de Kanikosen é pesada, violenta, e pouco aconselhada a leitores mais convencionais (tias de Cascais, e leitores assíduos de Paula Bobone e companhia). Propaganda Comuna chamar-lhe-ão alguns; Oportunismo Mediático dirão outros. Quanto ao Grande Crítico Literário THE PSY, este limitar-se-á a citar algo que estamos fartos de ouvir nos filmes: History repeats itself.

Cada carril de cada via-férrea de Hokkaido correspondia, literalmente, ao cadáver de um jornaleiro. E os blocos de betão armado para construir os portos eram os corpos dos operários enterrados em vida, como «colunas humanas». Aqueles trabalhadores de Hokkaido eram conhecidos como «polvos». O polvo, para sobreviver, come os próprios tentáculos. Eram exactamente isso! Assim surgiu essa classe de exploração primitiva que não temia nada. Os patrões recolhiam benefícios às pazadas. E racionalizaram-nos habilmente, associando-os a frases como «desenvolvimento da riqueza nacional». Os capitalistas eram muito astuciosos. Os trabalhadores morriam à fome, ou eram espancados até à morte «em nome da nação».

O Navio dos Homens, Takiji Kobayashi, Clube do Autor, 2010

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