quinta-feira, 13 de junho de 2013

Star Trek – Além da Escuridão


Há 4 anos, J. J. Abrams apanhou meio mundo de surpresa quando lançou um reboot/re-imaginação do universo Star Trek. Tratando-se de um dos franchises mais poderosos do cinema e da televisão era um risco tremendo. Foi um sucesso estrondoso. Não só realizou o melhor filme da colecção Star Trek (que já conta com 12), como realizou um dos melhores filmes de ficção-científica de sempre. Conseguiu unir a tradição e toda a cultura construída ao longo de anos em redor da criação de Gene Roddenberry, e ao mesmo tempo dar-lhe uma segunda vida. Muitos dos trekkies (vulgos fãs hardcore da saga) revoltaram-se contra o filme, alegando que era “demasiado Star Wars, e muito pouco Star Trek”. Mas essa gente, pela parte que me toca, pode ir morrer longe, numa nuvem de gás tóxico.
As expectativas para a sequela do filme eram elevadas, como é natural. Foram cumpridas? Hmmm… Em parte sim, em parte não. Este “Into Darkness” tem a matriz genética de J. J. Abrams. É fabuloso do ponto de vista visual, técnico, épico, e tudo aquilo que nos leva ao cinema. Mas isso para mim não chega. Bem sei que o cinema hoje-em-dia é feito para um amontoado de gente acéfala sem capacidade intelectual para distinguir a mão direita da mão esquerda, mas isso não é desculpa para cada vez mais se desinvestir no argumento dos filmes. Os escritores são os mesmos do filme anterior, mas a história fica a anos-luz do mesmo. Alguns dos diálogos são manifestamente maus, ao ponto de termos cenas em que o Capitão Kirk, armado em sopeira, se dá ao trabalho de discutir os problemas no namoro entre Spock e Uhura…
A história está repleta de incoerências, daquelas que um miúdo de 8 anos com um Q.I. médio detecta sem se esforçar muito. E a maioria delas são feitas propositadamente apenas para justificar “mais um cenário uaaaaau”. E isso é uma boa parte da razão do que mancha este filme. A maioria das cenas é arrastada até à exaustão, quase como um livro onde 75% das páginas são palha. Começando logo pela cena de abertura. Não vou fazer qualquer spoiler, dado que é algo que surge logo nos trailers. Em vez de optar por “BAM, houve um atentado”, perdem alguns 20 minutos a filmar um criancinha no hospital, que está doente, e os pais estão desesperados, e então aparece o mau da fita, a oferecer-lhes uma salvação miraculosa para a filha, mas que em troco disso o pai terá que rebentar uma bomba matando não sei quantas dezenas de pessoas, blábláblá, melodrama completamente estúpido, blábláblá, passaram-se 20 minutos. E o resto do filme cai repetidas vezes neste ciclo. Cada cena de porrada demora três-quartos-de-hora, sendo necessário filmar cada tiro, cada explosão, cada salto, cada “ai-meu-Deus-do-céu-vou-morrer-vou-morrer-olha-afinal-não-vou”. O filme, com mais de duas horas, tem basicamente quatro cenas. Agora é só “preencher os espaços em branco”.
Depois há a questão Kirk vs Spock. Estamos a falar de duas das personagens mais míticas do folclore pop do século XX. No Star Trek original o Capitão Kirk era um rebelde ousado, capaz de arriscar aquilo que os outros mais temiam. No filme anterior, Chris Pine fez um trabalho extraordinário em recriar Kirk, mas não sei por que carga de água alguém se lembrou de “re-imaginar” este novo Kirk como uma espécie de puto lunático e de birras que só faz asneiras sem pensar. É frustrante. Uma coisa é alguém irreverente, que desafia as regras, e a quem nós não hesitaríamos em seguir, outra coisa é um puto idiota que gosta de se armar em Justin Bieber e “siga pra bingo”. Mau. Por outro lado, Spock, sendo de longe a personagem mais popular de Star Trek, continua a estar em alta. Mérito de Zachary Quinto, que tem feito um trabalho excepcional, e que mesmo a ter que aturar estupidez melodramática e “discussões amorosas com a namorada a meio de uma batalha”, continua a ser a principal âncora do filme.
Mas calma, isto não acaba aqui. Ainda tenho que dar porrada no Simon Pegg, vulgo Scotty. Toda a gente se lembra do engenheiro rezingão Escocês. Como é que isso degenera nesta nova versão “escocês histérico saído de um filme de comédia que corre de um lado para o outro a esbracejar como um Zé Castelo Branco com o período”? Mau. Mau. Mau. No primeiro filme a coisa ainda passava. Neste… ugh! Safa-se o Karl Urban, que faz um Bones à altura, embora tenha sido relegado para segundo plano, já que os novos autores decidiram destruir a trindade original Kirk-Spock-Bones, alterando-a para a trindade Kirk-Spock-Uhura. E, convenhamos, que se a Zoe Saldana interpreta uma mulher inteligente e decidida no primeiro filme, neste serve apenas como babe-para-fazer-os-homens-babar.
Falando em babes, alguém teve a brilhante ideia de introduzir uma louraça bombástica, cuja única função no filme é pousar de mão na anca, em lingerie, em frente ao Kirk. Tal e qual, como num catálogo da Victoria’s Secret. Esta cena é de tal forma estúpida, que qualquer pessoa que tenha dois neurónios só pode fazer um facepalm em velocidade warp. As gajas boas em escassas vestes sempre foram uma constante em Star Trek (o que a malta só tem a agradecer), mas chegar a um ponto tão ridículo… não! Além do mais, a menina interpreta a Doutora Carol Marcus. Para os mais desconhecedores do lore Trekiano, é com esta moçoila com quem o Kirk vai ter um filho (se seguirem minimamente a história original). Por fim, embora a esta Alice Eve eu desse um 10 em 10 num catálogo da Victoria’s Secret, enquanto actriz confesso que nem a metade da escala chegaria…
Costuma dizer-se que o melhor guarda-se para o fim, e era isso que eu esperava fazer com o vilão. Lembram-se de eu ter falado de Benedict Cumberbatch (o Sherlock, do último post)? Pois bem, foi a ele que coube a tarefa de interpretar o papel de Khan. Infelizmente, a capacidade de os argumentistas trabalharem a história com pés e cabeça foi tão reduzida, que Cumberbatch nem teve grande oportunidade de dar vida à personagem. Tem direito a meia-dúzia de cenas, e pouco mais do que isso. Um desperdício absoluto. Mesmo assim, faz um trabalho extraordinário, literalmente fazendo omeletas sem ovos. Mas, na comparação com o Nero do filme anterior… nem há comparação possível. Chegamos ao fim do filme com a sensação de que é um tipo muito forte, que leva uns socos e aguenta-se em pé, e pouco mais.
E é em Khan que se centra a grande falha do filme. Ou, aliás, na tentativa de o recriar. O filme “A Ira de Khan” (1982) é uma espécie de vaca sagrada para os fãs de Star Trek. É o supra-sumo do franchise. E este novo filme é uma pálida tentativa de fazer um remake do original.
Bom, momentaneamente vou entrar em “modo spoilers”, portanto quem ainda não viu o filme, passe à frente, se faz favor.

ALERTA DE SPOILERS
Pois bem, “A Ira de Khan” é o momento mais alto do Star Trek original, não só por ser um excelente filme, com um tremendo vilão, mas essencialmente porque é o filme onde se aprofunda a tensão dramática, e se explora a amizade entre Kirk e Spock. Nesta nova era, a relação entre ambos é manifestamente pouco convincente. Passamos mais de metade do tempo a tentar perceber por que razão é que não se matam um ao outro, do que propriamente a assimilar a profunda amizade e confiança cega entre ambos. O filme original é de uma importância imensa porque, entre outras coisas, termina com a morte dramática de Spock. É um momento de excelência cinematográfica. I have been – and always shall be – your friend. (link)  Mas neste universo alternativo, para além de copiarem metade das frases emblemáticas, lembraram-se de fazer a coisa ao contrário. “Então e se desta vez fosse o Kirk a morrer, e o Spock a berrar: KHAAAAAAN!”. Lamento, está longe de ser uma ideia genial. E quando comparado lado-a-lado com o original… yuck!
E depois temos os orcs. Ou, perdão, os klingons. Sim, os famosos mauzões de Star Trek. Aparecem aqui pela primeira vez. Mas há um ligeiro problema, quanto a mim… Digamos que “apareceram no livro errado”. Alguém deve ter achado que estavam a filmar mais um “Senhor dos Anéis”, e então os novos klingons são basicamente orcs de olhos azuis com anéis na testa.
(momento de pausa prolongada)
FIM DE SPOILERS

Enfim, já vou com 4 páginas de texto, e ainda nem apontei metade dos erros grosseiros que o filme tem. Eu não queria deixar a sensação que se trata de um mau filme, mas há coisas tão básicas como o facto de a Enterprise estar sob ataque, a desfazer-se aos bocados, e metade dos figurantes continua a desfilar pelos corredores da nave como se estivesse a passear num centro comercial (é para estes pormenores que existe um Director Artístico para dar uns tabefes no realizador quando necessário).
Resumindo, quem for com a ideia de ver um bom filme de entretenimento, com excelentes cenários, e um ritmo muito bem conseguido, não vai certamente queixar-se. Quem, por outro lado, for com expectativas de ver um filme digno da chancela Star Trek, e começar a compará-lo com outro filme que foi realizado há precisamente 31 anos… sai do cinema a berrar tosh gahk naborrrrkkhhh ptui! Que em klingon quer basicamente dizer: tirem-me deste filme.

Pelo Melhor:
Os cenários sempre fabulosos. O ritmo frenético do filme, sempre muito bem marcado, e nunca dando espaço para adormecer.

Pelo Pior:
A incapacidade de escrever um argumento sólido. O popularismo pimba que visa a piadinha fácil para adolescente americano perceber. A opção por explorar (mal) a nostalgia, como “receita garantida”, em vez de apostar em novos rumos, e novas ideias, o que aliás é o espírito original de Star Trek: to boldly go where no man has gone before.


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