quinta-feira, 12 de setembro de 2013

A Gaiola Dourada


Hum? Então o gajo que só vê filmes de robots e dragões vem aqui falar de um drama/comédia luso-francês? O que é que há de errado com este filme? Ora, respondendo à letra: rien de rien!
Declaração de interesses #1: Eu não gosto de cinema Português. Já tentei ver dezenas de filmes, mas raros foram aqueles em que consegui passar dos 20 minutos. Acho-os parados, cinzentos, amorfos, desprovidos que qualquer interesse, com actores muito fracos, e uma produção paupérrima. Haverá, porventura, excepções, mas estou em crer que serão somente aquelas que confirmam a regra.
Declaração de interesses #2: Eu não gosto da Rita Blanco. Bem sei que é uma das artistas mais elogiadas em Portugal, mas sempre a vi no papel de sonsinha-enjoada que não passa daquilo.
Feitas estas duas declarações, o filme é soberbo, e a Rita Blanco é magistral. Que tal para começo de conversa?
Quando o filme foi anunciado, ignorei-o por completo. Uma comédia Portuguesa sobre emigrantes em França…? Ah, oui, oui, guardem-me o lugar na sala de cinema que – como cantam os Deolinda – vão sem mim, que eu vou lá ter! Só lhe comecei a dar atenção quando nas notícias começou a “empolar”. 450.000 espectadores. E, por mero acaso, vejo o trailer na televisão. E penso: será que…?
Pois bem, lá acabo por resolver ir ao cinema. Na primeira meia-hora não podia ter uma reacção mais negativa! Ah… então basicamente é um filme onde a cada 2 minutos as pessoas se riem porque alguém diz merda ou caralho… Começo a perceber o porquê de tanto sucesso. Mas aos poucos o filme vai-se desenrolando, e a atenção do espectador começa a ficar sequestrada. Na realidade, isto é um drama de uma intensidade tremenda disfarçado de comédia. Tem momentos hilariantes, sem dúvida (quando os gémeos decidem falar Português!), mas é o pano de fundo que lentamente vai surgindo. O argumento é de uma sagacidade luminosa. Simples, mas de uma consistência bela, e tão Humana que arrepia. Ruben Alves, 33 anos, luso-descendente, primeira longa-metragem da sua carreira, deixou-me rendido. Se é certo que ter toda a cavalaria pesada da produção Francesa atrás de si é meio-caminho andado, não é menos certo que a impressão digital do autor é o que sobressai nesta obra de excelência. A atenção ao detalhe é uma delícia. As personagens são ímpares. A porteira Portuguesa e o trolha que é fã do Benfica. O bacalhau. A fotografia dos três pastorinhos (quase imperceptível). A inteligência de conseguir satirizar os usos e costumes tão Portugueses, que fazem deste um dos povos mais genuínos e Humanos do mundo. É tudo comovente. Como é que por detrás dos merda! e dos foda-se! se consegue cinzelar um hino ao ser Português, tão tocante, tão arrepiante, tão sentido. Engana-se redondamente quem julga que isto é uma comédia. Isto, ó gente da minha terra, é um trabalho de amor à matriz Portuguesa. É o carinho profundo de quem sabe rir de si próprio, da sua inocência, dos seus infindáveis defeitos, somente superados pela sua inesgotável paixão, por um coração que deu novos mundos ao mundo. É a ternura profunda de um rapaz, que não tendo nascido em Portugal, trabalhou numa obra-prima para dedicar aos seus pais, e às suas raízes.
Tantas vezes me tenho lamentado aqui no blogue pela pasmaceira em que o cinema se afundou. Estava bem longe de pensar que seria um filme semi-Português a fazer-me renascer a devoção ao cinema. Muita gente estúpida vai achar que gosta do filme porque “é uma cena a gozar com os parolos dos emigrantes”, mas o mundo está cheio de gente estúpida, e nada há que possamos fazer, a não ser ignorá-los. Esta é uma das obras que mais reflecte sobre o que é este povo, numa introspecção fortíssima que começa por levar a coisa na brincadeira, e aos poucos vai relevando as várias camadas da cebola, prendendo o inocente espectador ao ecrã, apaixonando-se loucamente pelas personagens, querendo fazer parte desta família – sem se perceber que, na realidade, faz mais parte dela do que julga. Rita Blanco e Joaquim de Almeida têm ambos prestações magníficas, num diálogo perfeito que quase salta para fora da tela.
A música está nas mãos de Rodrigo Leão, um daqueles prodígios que a música Portuguesa possui. É difícil “sentir” a música ao longo do filme, pois há muitas músicas tradicionais Portuguesas que passam, intercalando com as peças originais do compositor. É preciso ver o filme uma segunda vez para se conseguir apurar. Mas enfim, é Rodrigo Leão, e portanto não deve oferecer muitas dúvidas quanto à qualidade. Não nos esqueçamos que este senhor, ao lado do “Adamastor” de nome Pedro Ayres de Magalhães, era um dos motores dos Madredeus.
Guarda-se o melhor para o fim, não é verdade? Falemos então da sequência que tem um fado cantado numa casa de fados. É o clímax do filme. É o momento em que cedemos, colapsamos, esquecemos a comédia, esquecemos o cinema, esquecemos tudo. É um dos fados mais poderosos do repertório de Portugal. Filmado com a garra que só deveria existir naqueles realizadores já com longa carreira feita, e discursos de agradecimento nos Óscares. Foram buscar a Catarina Wallenstein para interpretar a fadista. Já dela sentia que era uma das grandes actrizes que temos no país, e não me espantei quando toda a cena se desenrolou com uma perfeição irrepreensível. Mas agora acabo de ver o José Alberto Carvalho a entrevistar o Ruben Alves, onde este revela que a cena é gravada ao vivo, com a Catarina a “cantar de verdade”. Com licença. Permitam que me retire, pois creio que falhei uns quantos batimentos cardíacos… Estou de rastos.
Depois de hora e meia de êxtase, mergulhado neste tão tresloucado e imbecil orgulho estúpido de ser Português, que pouca gente no mundo consegue explicar, com a voz trémula e o rosto lavado em lágrimas, só me ocorre dedicar a Ruben Alves esta tão Portuguesa palavra: obrigado.

Pelo Melhor:
Catarina Wallenstein. São 4 minutos que nem Scorsese ou Copolla me conseguiram alguma vez dar.

Pelo Pior:

Rien de rien.


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