terça-feira, 3 de setembro de 2013

“Um Dia de Cólera”, de Arturo Pérez-Reverte


- Fogo! – ordena Daoiz, e todos se afastam.
É Goméz Mosquera quem aplica o bota-fogo fumegante. Com uma sacudidela violenta de retrocesso, o canhão envia a sua descarga de pedras de fuzil transformadas em metralha aos franceses agrupados a cinquenta passos. Aliviado, Daoiz vê como o grupo inimigo se desfaz: alguns soldados caem e outros correm, libertando aquele local da rua. Da cerca e varandas próximas, os atiradores aplaudem os artilheiros. Ramona García Sanchéz, depois de limpar o nariz com as costas da mão, lança, com muito garbo, um piropo ao capitão.
- Vivam os senhores oficiais bonitos, mesmo que sejam baixinhos. E viva a mãe que os pariu.

Eu odeio Espanhóis. E odeio particularmente um Espanhol: Arturo Pérez-Reverte. A razão é simples: nasceu no lado errado da fronteira. Tivesse nascido em Portugal e seria o melhor escritor do mundo. Assim, é apenas um Espanhol... que figura entre os meus 3 escritores de eleição. Ah, mas como odeio este gajo! Ao ponto de já ter lido 4 livros dele (antes deste), “A Tábua de Flandres”, “O Cemitério dos Barcos Sem Nome”, “O Clube Dumas”, “O Mestre de Esgrima”, e colocar os dois primeiros na minha lista de 50 livros imprescindíveis.
Falemos então deste quinto livro na minha contabilidade pessoal. Um Dia de Cólera é o livro mais difícil de abordar de Pérez-Reverte. Não se trata de ficção, não se trata de romance, não se trata de um documentário. Trata-se de literatura ao mais alto nível, o que é habitual em Pérez-Reverte. Temos que começar pela disciplina mais fascinante de todas: a História.
Nem que seja vagamente, toda a gente tem noção das campanhas de Napoleão e do seu exército Francês no início do século XIX. A acção do livro decorre em Madrid, uma das várias cidades Europeias ocupadas pelos Franceses, e cujo autoritarismo tem vindo a fazer crescer o sentimento de revolta entre a população. No dia 2 de Maio de 1808 “a tampa saltou”, e os Madrilenos revoltaram-se contra os invasores.
O livro não é um mero ensaio de ficção histórica. Não acompanha o dia-a-dia de uma ou outra personagem. Em vez disso, Pérez-Reverte fez um trabalho colossal para conseguir ficcionar todos os relatos históricos que dão conta do sucedido nesse dia de cólera. (Esta é a parte antipática do livro. Onde é que já se viu uma obra onde os Espanhóis são os bons da fita??!?) É difícil acompanhar o livro, pois ele alterna entre o relato pessoal de algumas personagens-chave, e o relato histórico do que aconteceu com centenas de intervenientes. E são mesmo centenas, e o escritor faz questão de os referir a todos pelo nome, profissão, origem, e sempre que possível relatar como morreram, ou como viveram. É um trabalho histórico notável. Uma homenagem extraordinária aos homens e mulheres do povo que se sublevaram contra os agressores. E esta história trata mesmo de homens e mulheres do povo, pois foram eles – como quase sempre acontece – que ousaram dizer não! Os nobres, ricos, e mesmo as cúpulas da Igreja, sempre conviveram bem com invasores ao longo da História, desde que nada lhes faltasse. O que interessa o sofrimento dos indigentes?
É curioso ver o quão meticuloso Pérez-Reverte é, em particular, com as mulheres que participaram na rebelião. E se são muitas! Esta não é uma história de soldados de dois exércitos aos tiros entre si. Antes, é a história dos sapateiros, serralheiros, carpinteiros e comerciantes que se lançaram em nome da pátria contra o Golias que os espezinhava, e das mulheres que arriscaram – e perderam! – as vidas ao lado dos seus maridos, disparando contra os Franceses, curando dos feridos, ou simplesmente ajudando a esconder os refugiados. É um relato frenético que dura 24 horas, no meio de tiros de fuzis, cartuchos mordidos, baionetas ensanguentadas, e salvas de canhão. Poucos filmes conseguem dar uma sensação tão real do que terá acontecido neste fatídico dia. Pérez-Reverte é genial.
No centro da narrativa estão os dois capitães “rebeldes”, Pedro Velarde e Luís Daoiz. Não comandaram exércitos, não tiveram reforços, não prepararam uma ofensiva. Limitaram-se a estar do lado certo da História: o lado de quem luta pelo que é seu. (Esperem lá… eu estou mesmo a falar de Espanhóis?!?! Que se passa comigo?) Ao lado de Velarde e Daoiz estão centenas de populares desorientados, revoltados, alguns que trazem as suas próprias armas, e que querem correr com os gabachos. É o caso do serralheiro Blas Molina, figura que ficará para a História, ao lado de incontáveis anónimos que o Tempo se encarregou de esquecer.
A vividez da escrita é avassaladora. Pérez-Reverte É avassalador a escrever. Percorremos as ruas de Madrid, os seus jardins, a Puerta del Sol, e estamos na ombreira de cada porta a ver as movimentações de ambos os lados. Vemos as mulheres à varanda, que atiram vasos à cabeça dos Franceses quando estes passam. Vemos a freira na janela do convento a incitar à rebelião. Vimos os rapazes de 12 anos a morrerem com uma salva de metralha. E vimos o sangue coagulado que ensopa as ruas da capital. Não é um livro fácil de ler, mas é um guião magistral para um documentário.
Um pormenor: o livro vem acompanhado de um mapa de Madrid da altura. Portanto, torna a experiência de acompanhar o que se passa ao longo da cidade ainda mais envolvente.
Os dois capítulos finais são um murro no estômago, à medida que vemos os insurrectos a tombar, e as tropas de Napoleão a reassumir o controlo das ruas. Lamento pelo “spoiler”, mas… estamos a falar de factos Históricos, portanto não é propriamente o segredo mais bem guardado do mundo. Testemunhar o silenciar dos tiros, contabilizar os mortos, e acompanhar a repressão violenta dos Franceses deixa-nos deprimidos. No fim de um livro queremos sempre que os bons ganhem. Mesmo que sejam Espanhóis. E sentir a “aura negra” a baixar à medida que o livro caminha para o fim… é um desalento.
Eu quero ter um escritor assim a falar da História do meu país. Pérez-Reverte é tão grande que tem, inclusive, a sagacidade de assumir uma postura imparcial. Não é um relato a preto-e-branco de estes são os bons, e aqueles são os maus. De ambos os lados há heróis e vilões. De ambos os lados há homens de coragem, e cobardes cujo nome não merece ter entrado para a História. Este livro é a dádiva de Pérez-Reverte ao seu país. Os Espanhóis deviam beijar o chão que este homem pisa. Que tributo magnífico aos pobres chisperos e manolos que se ergueram contra os opressores.

A 2 de Maio de 1808 os referidos heróis Daoiz e Velarde adquiriram a glória que imortalizará os seus nomes e que deu tanta honra às suas famílias e a toda a nação.

Há inúmeros episódios memoráveis no livro, como o da mulher que morre com uma bala no pescoço quando leva um garrafão de vinho aos soldados. Como refere uma crítica do El País, citada na lombada: O leitor fica com a sensação de estar envolvido na confusão de fumo, pólvora e espanto que foi o 2 de Maio. Até parece prudente baixarmo-nos.
Como odeio este Espanhol…

Um Dia de Cólera, Arturo Pérez-Reverte, ASA, 2008

Página do autor: http://www.perezreverte.com/

Sem comentários:

Enviar um comentário