terça-feira, 27 de janeiro de 2015

“Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes”, de Mathias Énard




A noite não comunica com o dia. Arde nele. Levam-na para a fogueira ao alvorecer. E, juntamente com ela, a sua gente, os beberrões, os poetas, os amantes. Nós somos um povo de degenerados, de condenados à morte. A ti não te conheço. Conheço o teu amigo turco; é um dos nossos. A pouco e pouco desaparece do mundo, engolido pela sombra e pelas suas miragens; somos irmãos. Não sei que dor ou que prazer o empurrou para nós, para o pó de estrela, talvez o ópio, talvez o vinho, talvez o amor; talvez alguma obscura ferida da alma, bem escolhida nos recessos da memória.

Ninguém começa um livro desta forma. É daquelas aberturas ao nível de "Um Conto de Duas Cidades", onde a velocidade das palavras se sobrepõe a qualquer espécie de "situação de abertura" para enquadrar o leitor na acção. O livro começa assim, e nunca mais abranda.
"Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes" é uma daquelas obras inesperadas que nos caem nas mãos com uma violência inusitada. Isto não é um livro. Antes, é um devaneio estridente de um fôlego único que atropela as palavras antes sequer destas surgirem na mente. E é brilhante.
Mathias Énard tenta fazer-nos entrar na mente de um dos maiores génios da Humanidade (o maior?): Michelangelo Buonarrotti. E agora a pergunta para um milhão de Euros: como é a mente de um génio criativo da magnitude de Michelangelo? Exacto, um turbilhão alucinante de ideias, cores, poesia, música, arquitectura, raiva, frustração, cheiros - respirar fundo! - pessoas, aves, movimento, desejo, emoção, línguas, ferramentas. E o livro é-nos servido desta forma, numa sequência de mini-capítulos que acompanham uma fictícia viagem do Mestre a Constantinopla, em segredo, como forma de se vingar do Papa Júlio II, e oferecer os seus dotes de artista ao Sultão.
Michelangelo tem uma ponte para projectar, mas isso é um mero pormenor na história. Os cinco sentidos do génio devoram tudo o que o rodeia.
Há capítulos que arrancam em alta velocidade onde apenas figuram listas enormes de ingredientes, aqueles que Michelangelo encontra nos mercadores azafamados por onde passa. Não existe verdadeiramente uma história contida neste livro. O que há são os estímulos sensoriais que a personagem assimila neste dia-a-dia alienígena.
Esta talvez seja a altura indicada para referir a tradução. Das primeiras coisas que me saltou à vista quando olhei para a capa foi a referência “Tradução de Pedro Tamen” em letras de tamanho consideravelmente generoso. Ora, exceptuando aqueles casos em que temos “As Minas de Salomão, com tradução de Eça de Queirós”, não é propriamente habitual ver o nome do tradutor merecer tamanho destaque na capa. Neste caso é perfeitamente justificado. A beleza do texto na imortal Língua de Camões é marcante. O exotismo de conciliar vocábulos como “dragomano”, “caravançarai”, ou “janízaros”, com a restante prosa, fazendo-o com o alto nível que o texto merece, é verdadeiramente razão q.b. para ter destaque na capa.
Mas voltemos à história, para referir a ampla dimensão de uma obra tão curta, que se esvai em meia-dúzia de saborosas páginas, para mencionar o apetitoso que é ver as rivalidades entre Michelangelo e Rafael, ou Bramante. Ver o humor de chamar “Júlio” ao macaco de estimação que lhe faz companhia. E perceber que tudo isto se pode enquadrar tão bem com uma personalidade voraz como a do génio Florentino. Muitas recriações históricas acabam por estragar as personagens em que se baseiam por mera idiotice dos autores, que preferem inventar escândalos sexuais, ou outras parvoíces que tais, e que pouco ou nada têm a ver com a personalidade da personagem. Mas aqui é precisamente o contrário. Todos os pensamentos mundanos parecem assentar que nem uma luva nesta fascinante personagem.
Não tenho talento para conseguir explicar por meras palavras a satisfação que é ler, e poder ter livros destes nas mãos. A tristeza com que fico quando penso que há tanta gente neste mundo que infelizmente não pode provar desta Ambrosia. E a cólera que me assoma às amígdalas quando penso que há gente que perde dinheiro – e acima de tudo tempo – a ler aqueles belos pedaços de esterco que geralmente figuram entre as listas de bestsellers. Eu tenho a sorte de ter amigos fenomenais, com bom gosto, estimulantes, e que me colocam livros destes nas mãos. Dizer mil vezes obrigado não chega para mostrar a excitaçãozinha histérica com que fico quando devoro páginas deste calibre. Ler livros desta qualidade é comer gelados da Carte d’Or com a caçarola da sopa.
Mathias Énard é um daqueles escritores a quem o mundo tem a obrigação de estar atento. Demonstrar tamanho talento para a escrita, aliado à sublevação imperial das palavras que usa, é a garantia de muitas páginas futuras de elevada qualidade.
Et voilà, ficam assim a saber, como tinha prometido, qual foi o melhor livro que li em 2014.
E, porque não resisto, mesmo que corra o risco de transcrever metade do livro para aqui, calo-me muito caladinho, com mais uns quantos pulinhos de excitaçãozinha histérica, com apenas mais um, ou dois parágrafos. Ou três. Ou quatro…

A algumas centenas de metros para trás deles, a montante, ergue-se a forma escura do andaime do botaréu da ponte que Miguel Ângelo não chegará a ver.
Abraça longamente Manuel, como se fosse outro que ali estivesse em seu lugar, e depois sobe para bordo. Sente uma dor surda no peito, e atribui-a ao seu ferimento; sobem-lhe lágrimas aos olhos.
O único objecto que trouxe consigo é o seu caderno, onde anota algumas últimas palavras, enquanto o navio passa a ponta do Serralho.
Aparecer, manifestar-se, brilhar.
Constelar, cintilar, extinguir-se.

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