quinta-feira, 20 de outubro de 2011

A Derrota do Humanismo



Humanidade. Sociedade. Civismo. Assim mesmo, por ordem decrescente. E cada vez mais decrescente. Vivemos cada vez mais em sociedade, e estamos cada vez menos humanos.
Dizem os sociólogos e os antropólogos que os seres humanos “estão formatados” para viver em comunidade, e que tal é parte da nossa evolução natural. Resta a pergunta: o que significa isso ao certo na mentalidade dos dias de hoje?
Já vinha há uns tempos a pensar escrever sobre disto, mas duas notícias destes últimos dias levaram-me a fazê-lo sem mais demoras. Já todos devem ter visto a notícia de uma menina de dois anos que foi atropelada num mercado na China, e pela qual passaram várias pessoas que simplesmente ignoraram. Durante quase 15 minutos. A menina chegou a ser atropelada por duas carrinhas. Mesmo para quem tem estômago de ferro as imagens são perturbadoras.
Depois disto, no jornal Público, vejo uma notícia que dá conta de um rapaz de 19 anos que foi morto à facada na zona de Sintra por tentar impedir que um bando roubasse um boné a um miúdo. A notícia pode ser vista aqui.
Muitos poderão ler isto e dizer: ora, isso são dois casos isolados, em nada espelham o que a sociedade é. Pois, o problema é quando se sucedem casos como estes. Recentemente vi uma reportagem (julgo que da BBC) referente a uma experiência que fizeram, e que passava por uma pessoa dar sinais de estar cheia de dores e cair nas escadas da mais movimentada estação ferroviária de Londres. Dezenas de pessoas passaram, desviando o olhar, pura e simplesmente ignorando a situação, sem sequer um simples “está a sentir-se bem?”.
Há também pouco tempo surgiram imagens de Nova Iorque onde um sem-abrigo impede um assalto, é esfaqueado, cai ao chão, e fica a esvair-se em sangue até morrer durante horas, sem que uma única pessoa o venha ajudar. Houve quem parasse para lhe tirar fotografias.
Em que ponto é que começámos a perder o nosso civismo e a abdicar da nossa humanidade? Inúmeros são os casos de pessoas que desviam a cara quando vêem alguém a precisar de ajuda no meio da rua.
Estes são exemplos extremos, mas o nosso quotidiano está cheio de situações destas. Ao entrarmos nesta “mentalidade de manada” tornamo-nos cúmplices. Quem cala, consente.
Esta degradação vem instalando-se aos poucos, ao longo dos últimos anos. A educação tornou-se algo tão escasso como os combustíveis fósseis. Começou com o simples acto de as pessoas deixarem de dar os “bons dias”. Há uns anos trabalhava num desses modernaços parque tecnológicos, cheios de empresas de informação e tecnologia. Quando passava num corredor e dizia “Bom Dia”, fazia-se silêncio, ficavam a olhar para mim em estado de choque. No tempo do meu avô os homens de bem davam os bons dias, tiravam o chapéu, e faziam uma ligeira vénia. Hoje, muitas vezes, olha-se com incredulidade para quem diz “Bom Dia!”.
Quando andava na escola, respeitávamos os professores. Hoje os alunos berram – quando não agridem – com os professores por estes os mandarem largar os telemóveis no meio da aula.
Pode parecer dramatismo, mas é precisamente aqui que se começa a destruir uma sociedade. Quando nos tornamos complacentes com a ausência da educação básica. A passividade boçal com que a maioria das pessoas urbanas/modernas/citadinas/desenvolvidas(?) exibe um sorrisinho amarelo do “não é nada comigo”.
Cada vez que tomamos conscientemente a decisão de nos afastarmos, não ter trabalhos, não nos incomodarmos, não arranjar chatices, seguir a corrente, contribuímos activamente para destruir um pouco mais aquilo que demorámos vários milhões de anos a evoluir.
Quando vemos um velho a pedir no meio da rua desviamos o olhar e dizemos “agora não tenho nada”. Meia hora depois estamos numa esplanada a comer um Magnum Amêndoas. À noite, dormimos na nossa casa com o aquecimento ligado nos 23ºC. O velho dorme num cartão no meio da rua – o mesmo que nos faz atravessar a rua para o outro lado quando “não o vemos”. Quando passamos por uma campanha de recolha de alimentos do Banco Alimentar entregamos um saco com duas latas de salsichas “porque os tempos estão difíceis e temos todos que poupar”. À noite, deitamos metade do jantar fora porque “já estamos cheios”. Graças ao Banco Alimentar, nessa mesma noite, há pessoas que podem ter o luxo de comer um iogurte.
Um homem caído no meio da rua nem sempre é um bêbedo. E mesmo que o seja, continua a ser tão humano como nós. Por vezes até mais.

 

On the turning away
From the pale and downtrodden
And the words they say
Which we won't understand
"Don't accept that what's happening
Is just a case of others' suffering
Or you'll find that you're joining in
The turning away"
It's a sin that somehow
Light is changing to shadow
And casting it's shroud
Over all we have known
Unaware how the ranks have grown
Driven on by a heart of stone
We could find that we're all alone
In the dream of the proud
On the wings of the night
As the daytime is stirring
Where the speechless unite
In a silent accord
Using words you will find are strange
And mesmerized as they light the flame
Feel the new wind of change
On the wings of the night
No more turning away
From the weak and the weary
No more turning away
From the coldness inside
Just a world that we all must share
It's not enough just to stand and stare
Is it only a dream that there'll be
No more turning away?

“On the Turning Away”, Pink Floyd, 1987


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