segunda-feira, 2 de julho de 2012

"A Glória dos Traidores", de George R. R. Martin


Já por aqui falei anteriormente da minha relação amor/ódio com George RR Martin e a saga “As Crónicas de Gelo e Fogo” (Game of Thrones). Tendo terminado recentemente o sexto livro da edição portuguesa (segunda parte do terceiro livro da versão original – “Storm of Swords”) devo dizer que “A Glória dos Traidores” aumentou consideravelmente o meu amor pela saga… e o meu ódio por Martin.
Depois de ter sofrido uma travessia pelo deserto ao ler o livro anterior, onde basicamente gramei 500 páginas onde nada se passou, e onde julguei que a saga tinha finalmente terminado visto o seu autor estar a entrar em “modo telenovela” para fazer render o peixe, estava receoso de pegar neste livro. Se há coisa que não suporto é ter a sensação que um escritor coloca a história a dar voltas e voltinhas só para engonhar, e basicamente é isso que acontece na primeira parte do livro cinco (versão PT). Já pouca pachorra existe para ler mais capítulos da Daenerys e o seu never-ending-safari, já pouca pachorra existe para ler mais capítulos da Arya e o seu interminável “agora vou para Norte, fui raptada, agora vou para Sul, fui raptada outra vez, agora vou para Norte, fui mais uma vez raptada”, e já pouca pachorra existe para o “não sei o que fazer com os dois Starks pequenos, e portanto vou colocá-los a dar voltas sem destino”.
Eis que começa “A Glória dos Traidores”. E começa logo mal! Ena, mais um capítulo do safari da Daenerys… tou feito. Mas logo de seguida a história começa a dar ares de querer romper com a rotina, e de se preparar para acelerar.
Faço aqui uma pausa para alertar quem estiver a ler isto que daqui para a frente vou aprofundar o que ocorre no livro, o que implica que haja revelações sobre episódios do mesmo. Quem ainda não chegou a este ponto, e não pretende “estragar a surpresa” do que vai ocorrer, deve parar de ler… NESTE PRECISO MOMENTO!
É inevitável uma pessoa apaixonar-se pelas personagens de um livro. Não é precisamente para isso que eles são escritos? Para seguirmos as tristezas e as alegrias das personagens? Os seus desafios e tudo o mais? Com Martin, é melhor pensar duas vezes… Pouco escritores têm tanto talento a criar personagens deslumbrantes. E poucos escritores têm tanto desprezo pelas personagens que criam. Martin é uma espécie de psicopata que se diverte a criar dezenas de personagens para uma história, para depois ter a oportunidade de fazer genocídios seguidos.
Quando “A Glória dos Traidores” começa, a história está de tal forma dispersa que a única coisa que a parece segurar é o confronto Lannister/Stark. E, verdade seja dita, depois do livro anterior, a única personagem que parece estar a caminhar nalgum sentido é Robb. Aguardava-se com alguma expectativa o confronto entre as duas Casas. Até que Martin decide entrar em modo genocídio. É bastante frustrante ler toda a sequência do “Casamento Vermelho”. Em primeiro lugar porque é bastante denunciada. Todo o ambiente deixa antever que “algo está prestes a passar-se”. E depois, quando traiçoeiramente Robb e Catelyn são mortos, a sensação com que uma pessoa fica é: ok, mataste as únicas personagens que não andavam feitas tontinhas a passear pelo mapa sem nada fazer. Diz-me lá quais são as razões para continuar a ler o livro? A personagem do Robb até é a menos interessante de toda a saga, mas era a única que agitava minimamente a história por estas alturas. É algo idiota ficar com a sensação de ter lido 800 páginas à espera do confronto entre os exércitos, e agora de repente… não. Mas pior do que matar Robb era matar Catelyn. É das personagens que mais despercebidas passam na história, mas provavelmente a mais interessante de todas. É a única que revela estar à margem de toda a “cena épica”, tentando mostrar um ar feroz e resoluto, mas estando na realidade em pânico, agonia e tristeza surreal. É uma personagem demasiado humana para “A Guerra dos Tronos”. E portanto, a dada altura fica a sensação que a história fica reduzida ao “cliché das criancinhas super-poderosas que andam pelo mundo a fazer coisas fantabulásticas”.
Tão ou mais cliché é ver, meia dúzia de páginas depois, um outro casamento, que resulta num outro genocídio… Aqui até podia ter havido o factor “uau”, mas quando as coisas se tornam tão sem pés nem cabeça, esse efeito dissipa. E quem acompanha a saga apercebe-se que Martin para “fingir” que foge aos clichés habituais da literatura de fantasia criou o seu próprio cliché que é “vou fazer exactamente o oposto do que toda a gente está à espera”. Mas qualquer fórmula de sucesso deixa de resultar quando é utilizada ad nauseam. As reviravoltas na história chegam a ser de tal forma forçadas que acabam por chatear.
O que vale a Martin é ele escrever muito bem. Muito bem MESMO. É um extraordinário contador de histórias, e mesmo brindando os leitores com episódios que dão vontade de “parar de ver a série a meio” consegue de um momento para o outro relançar a história. E é isso que acontece neste livro. Creio que o plano inicial estava bastante longe do rumo que Martin escolheu (se é que ele alguma vez teve uma coisa dessas), mas à semelhança da maioria dos escritores de fantasia decidiu “acrescentar mais uns quantos volumes já que isto está a vender bem”.
A pior cena do livro, e que é uma daquelas que me fará nunca colocar Martin no panteão dos escritores de fantasia, é o reencontro dos gémeos. A cena é tão estúpida e atroz que demonstra que o escritor se deleita em cenas de sexo e “gore” apenas para chocar audiências e vender, vender, vender. Truques rasteiros e verdadeiramente óbvios. Cersei está ajoelhada perante o altar onde jaz o corpo inanimado do filho. O seu irmão incestuoso regressa depois de semanas de cativeiro. E o que é que fazem imediatamente? Sexo em cima do altar onde está o cadáver do filho de ambos. O imbecil do escritor chega ao ponto de se deleitar a descrever que Cersei está com o período. Se isto é literatura de qualidade, então vou ali e já volto. É muito mau. Pornografia reles, dispensa-se.
“A Storm of Swords”/A Glória dos Traidores é um livro sem grande coerência, apesar de ser para muitos dos fãs o melhor da saga (não compreendo como). Há inclusive cenas que deixam uma pessoa a coçar a cabeça. Um capítulo termina com Sam e Gily a darem de caras com uma estranha figura montada num alce gigante, e alguns capítulos mais tarde estão ambos na Muralha, cara-a-cara com Bran, e quase logo a seguir já Sam está ao lado de Jon. Para quem se dá ao luxo de gastar centenas de páginas a engonhar onde nada se passa, causa alguma estranheza ver estes saltos na história. Mas, se o que vem na wikipedia é verdade, a versão original do livro tinha mais de 1500 páginas, que os editores cortaram para 900, portanto talvez seja de assumir que “algo foi engolido pela destroçadora de papel”.
Merece ainda particular atenção a cena da fuga do Tyrion. Porque toda ela, a meu ver, é uma sinfonia sem nexo. O anão está estarrecido na cela, borrado de medo ao ponto de se encostar à parede quando pensa que o vêm buscar para a execução. Na realidade é o irmão que o vem ajudar a fugir, o que faz sentido. Agora, quando a meio da fuga “do nada” aparece uma escadaria com 300 degraus que vai dar directamente ao quarto do pai - eu vou interromper aqui a prosa por um momento só para visualizarmos uma escadaria com trezentos degraus, isso mesmo, TREZENTOS, e ponderar a facilidade com que um anão de pernas atrofiadas a subiria, no momento em que está borrado de medo e a fugir da prisão – e, em mais uma daquelas reviravoltas “Martinianas” (ou Marcianas, se preferirmos) mata Tywin Lannister. Estamos a falar de uma das personagens com mais potencial em toda a história. Tywin é um gigante. É aquela personagem intocável, demasiado grande. E Tyrion, que até é o único gajo decente na saga toda, dá-se ao luxo de subir 300 degraus, a meio da sua fuga, para ir matar o pai, quando até aqui vimos sempre o conflito pai-filho não amado, onde sempre ficou bem claro que aquilo que Tyrion mais queria na vida era ficar bem visto aos olhos do pai. Se este o matasse numa decisão emotiva, até acharia normal, agora fazê-lo com frieza, racionalidade, E SUBINDO 300 DEGRAUS COM AS SUAS PERNINHAS ATROFIADAS PARA MATAR UM DOS MELHORES GUERREIROS/ESTRATEGAS DO REINO… simplesmente: não. É decepcionante. É Martin no seu pior. Matar personagens só por matar. Sem servir qualquer propósito na história. Sem coerência. Só para chocar os leitores nas pausas da pornografia com sangue à mistura.
Eu até arriscaria dizer que estes eram os dois piores momentos da saga, mas até tenho medo que está para vir, portanto é melhor não fazer apostas.
Mas lá está, Martin escreve mesmo muito bem. O ambiente das histórias é fantástico, sedutor, inebriante, viciante. Perdoamos-lhe todas estas cretinices para nos continuarmos a deslumbrar com a riqueza da história. E creio que o segredo é mesmo esse. Li algures num blogue que faz uma crítica ao livro que ao contrário da maioria das obras onde as personagens são o centro da história, aqui tal não acontece. As personagens são meros adornos numa história demasiado forte e vibrante que parece ter a força da Muralha, e existir por si só. O epílogo é precisamente exemplo disso. Quando Catelyn-zombie aparece, descrita daquela forma, os nossos olhos abrem-se, as narinas dilatam, e um sopro escapa-se-nos. Até pode ser um misto de espanto inesperado com o tal “lá vem a merda do cliché do vamos lá pôr aqui outra vez qualquer coisa para apanhar de surpresa toda a gente”. Mas é um facto que resulta. Tanto, que mal acabei “A Glória dos Traidores” fiz algo que não contava fazer.
Comecei de imediato a ler “A Feast for Crows”.
Eis-nos, então, aqui chegados. Não arrisco uma conclusão sobre o livro. Para muitos este é o melhor livro da série, para outros tantos é um livro tão mau que arruína a saga. Eu não me incluo na legião de “adoradores-zombie” que acham que tudo o que Martin escreve e faz é ouro (como o que Tywin caga), nem me incluo na turba ululante que lança ameaças de morte ao autor da obra. Ameaças de Morte só mesmo ao George Lucas pelo assassinato d’A Guerra das Estrelas, mas enfim, não divaguemos. Mantenho-me um ávido leitor d’As Crónicas de Gelo e Fogo. Reafirmo a qualidade da criação no âmbito do património da literatura fantástica, mas não me coíbo de tecer duras críticas a George RR Martin por optar tantas vezes por episódios de “folhetim porno-pop/gore” que acabam por diminuir uma obra que poderia rivalizar com “os melhores entre os melhores”.
Uma coisa é certa: uma obra que a nível mundial coloca tanta gente a discutir sobre si mesma, é porque tem algo que merece ser levado muito a sério. E se um escritor leva traulitadas tão apaixonadas por parte dos seus fãs... é porque está no caminho certo.

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