terça-feira, 29 de outubro de 2013

«de tudo o que fui e de tudo o que me espera»

Dissera-o, rindo-se atrás do vidro de um copo de vinho, em Veneza, na última noite de fim de ano em que estiveram juntos. Ela tinha insistido em regressar ali, onde passara vários fins de ano da sua infância, para ver a exposição dos surrealistas no palácio Grassi. Quero que me leves ao melhor hotel dessa cidade fantasma, pediu, e que deambules comigo de noite pelas suas ruas desertas, porque só nesses dias é possível vê-las assim: está tanto frio que os turistas de pé descalço morrem congelados nos bancos, toda a gente se refugia em hotéis e pensões, nas ruas só há gôndolas baloiçando silenciosamente nos canais, a rua dos Assassinos parece mais estreita e sombria do que nunca e as quatro figuras talhadas em pedra da Piazzetta aproximam-se mais umas das outras como se tivessem um segredo que quem as contempla desconhece. Quando era uma jovenzinha, fugia para passear com cachecol e gorro de lã, ouvindo o eco dos meus passos, enquanto os gatos me olhavam dos portais escuros. Há muito tempo que não vou a essa cidade e agora desejo fazê-lo de novo. Contigo, Faulques. Quero que me ajudes a procurar a sombra dessa menina, e depois, de volta ao hotel, ma cosas de novo aos calcanhares com agulha e linha, silencioso, paciente, enquanto fazes amor comigo com a janela aberta e o frio da lagoa eriçando-te as costas, com as minhas unhas cravadas nelas, até sangrares e eu me esquecer de ti, de Veneza, de tudo o que fui e de tudo o que me espera.

Há uma pessoa que escreve assim.

(odeio este Espanhol…)


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